
João Batista Pinto está divulgando no Instagram uma espécie de “pague um, leve dois” do mundo cirúrgico: faça uma cesárea e ganhe uma laqueadura. A oferta é ilegal, segundo a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia, a Febrasgo. E, ao contrário do que afirma nas redes, Pinto não é nem ginecologista, nem obstetra.
Apesar de ser médico com registro em Goiás, Pinto não tem nenhuma especialidade. O número do Registro de Qualificação de Especialidade que ele ostenta na internet para atrair pacientes a seu consultório é, na verdade, de um ginecologista e obstetra de mesmo nome que atua em Minas Gerais.
A história vai ficar ainda pior. João Batista Pinto, o de Goiás, é velho conhecido da justiça. Em 2009, ele foi condenado em definitivo a 15 anos e quatro meses na prisão pelo estupro de três meninas e por atentado ao pudor contra uma vítima, de acordo com informações repassadas ao Intercept Brasil pelo Ministério Público do Estado de Goiás.
Em 2008, Pinto havia sido preso pela suspeita de estuprar oito menores, de 12 a 14 anos. Como noticiou a Folha de S.Paulo na época, segundo a polícia, três das meninas confirmaram terem sido estupradas pelo médico.
“O suspeito pegava e deixava as meninas na rua dos fundos da escola”, narrou a reportagem. “O médico mandava que as meninas virassem ou escondessem o rosto quando chegavam na recepção do motel”.
Após cumprir parte da pena na prisão, Pinto recebeu liberdade condicional em 2017 e, em julho de 2020, seu processo foi extinto, segundo o MP goiano e a Diretoria-Geral de Administração Penitenciária do estado. Livre, ele voltou a atuar como médico e passou a usar as redes sociais para vender serviços de ginecologista e obstetra – embora não seja nenhum dos dois.
Perguntamos à assessoria de imprensa do Conselho Regional de Medicina de Goiás, o Cremego, se o João Batista Pinto preso por estupro em 2008 era o mesmo da oferta da cesárea. “É o mesmo médico”, respondeu o órgão. “Veja que ele não tem especialidade médica registrada. Ou seja: não é ginecologista e obstetra”, afirmou a assessoria de imprensa do Cremego.

Ao Intercept, João Batista Pinto negou que usa outro registro – sem explicar a razão de seu RQE informado nas redes pertencer a outra pessoa – e afirmou que tem feito partos e laqueaduras em seu “exercício legal de médico”. Sobre sua condenação por estupro, diz que não tem “nenhuma consideração” a fazer pois o processo está extinto. (Leia a resposta dele no fim deste texto).
O Cremego afirmou que Pinto pode realizar os procedimentos de cesárea e laqueadura, mesmo sendo médico generalista. O que não pode é vender seus serviços divulgando uma especialidade que não tem – ainda mais usando o registro de ginecologista e obstetra de outra pessoa.
Questionado sobre a manutenção da licença do médico para exercer a profissão após as condenações por estupros de menores de idade, o Cremego explicou que cabe ao conselho apurar apenas infrações éticas e administrativas relativas à profissão, e não questões criminais.
“A pessoa pode ter matado alguém, mas não ter cometido nenhuma infração ética. Os CRMs julgam a conduta profissional”, explicou um funcionário do órgão que não será identificado, por receio de retaliações profissionais.

Fizemos o mesmo questionamento à coordenadora do Núcleo Especializado de Defesa e Promoção dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de Goiás, o Nudem-GO, Maria Paula Benjamim Borges. Ela ponderou que, por um lado, “não parece razoável” cassar o registro de uma pessoa por um delito cometido, já que seu sustento depende disso.
“Contudo, também não parece razoável a permissão para que um homem condenado por diversos estupros contra mulheres e crianças possa exercer a profissão em contato direto e pessoal com o grupo violentado anteriormente”, continuou.
“Não só a profissão da ginecologia e obstetrícia facilita a aproximação do autor de delitos sexuais às vítimas já preferencialmente conhecidas, como também não veda o constrangimento pessoal das mulheres atendidas que não sabem dos antecedentes do médico”, reforçou Borges.
Para que não haja confusão: o João Batista Pinto de que trata essa reportagem tem o registro médico de número 6095-GO e atende no Hospital Ismael Queiroz, em Goiânia. O homônimo tem registro em Minas Gerais com outro número.
Procuramos o ginecologista e obstetra de Minas que teve o RQE usado pelo médico de Goiás, mas não conseguimos localizá-lo. O número de telefone informado em seu registro médico é de um hospital em Belo Horizonte, cuja assessoria informou que ele não faz mais parte do quadro de funcionários e não deixou nenhum contato. Consultado, o Cremego confirmou que se trata de outra pessoa.
Pague por uma cirurgia (desnecessária) e ganhe outra
No Instagram, João Batista Pinto coleciona fotos de recém-nascidos com mães sorridentes e alheias ao fato de terem sido enganadas. E, mais recentemente, passou a oferecer uma promoção que incentiva mulheres a passarem por uma cesárea desnecessária para garantir a laqueadura. Isso vai contra a lei, que proíbe “cesárea indicada para fim exclusivo de esterilização”.
Após o Intercept enviar os prints e os links das publicações com as ofertas, o Conselho Regional de Medicina de Goiás decidiu investigar a conduta do médico. Em nota, o Cremego informou que “está apurando se as publicações infringem o Código de Ética Médica e a Resolução CFM 1974/2011, que trata da divulgação de assuntos médicos”. A apuração está em sigilo.
Sem saber que falava com uma jornalista, a equipe do dr. João Batista Pinto confirmou que a cesárea da promoção da laqueadura gratuita pode ser feita sem indicação médica a R$ 3,8 mil, se for pré-agendada – ou seja, marcada com antecedência e realizada independentemente de a mulher estar ou não em trabalho de parto.
Caso a cesárea não esteja marcada, o preço sobe para R$ 5 mil. Já pelo parto normal, o médico generalista cobra R$ 6 mil. Ao ser perguntada por que o parto custa mais, a equipe afirmou: “Porque demanda mais tempo e disponibilidade dos profissionais”.
Após nosso primeiro contato para ouvir o médico a respeito da oferta ilegal, os posts foram deletados. João Batista Pinto se esqueceu, no entanto, de apagar um story em destaque há cinco meses, em que propagandeia a cesárea com laqueadura de brinde durante uma sessão de perguntas e respostas. Pinto também esqueceu que tem outro perfil ativo no Instagram, que ainda ostenta a oferta.

Segundo dados do Ministério da Saúde, 86% dos partos realizados no sistema privado de saúde são cesáreas, embora a Organização Mundial da Saúde recomende que a taxa não passe dos 15%. Isso acontece porque muitas dessas cirurgias são feitas sem indicação clínica, a fim de otimizar a agenda dos médicos, que se torna mais incerta se submetida aos partos naturais.
Uma cesárea
pré-agendada precisa, é claro, do consentimento da mulher. As gestantes que concordam – ou mesmo que pedem o procedimento – podem fazê-lo por vontade própria, por falta de informação sobre todos os riscos envolvidos ou por medo de sofrer violência obstétrica no parto normal.

“Uma mulher bem informada tem o direito de fazer suas escolhas”, acredita a médica obstetra Melania Amorim, professora de ginecologia e obstetrícia da UFCG. Mas há um porém. “Essa ‘escolha’ pode não ser real, se não houver amplo acesso às informações e evidências dos riscos e benefícios”, argumentou. Como toda cirurgia, a cesárea tem riscos: hemorragia, infecção, parada cardíaca e ruptura uterina futura para a mulher. E, para o recém-nascido, o de desconforto respiratório e de admissão em UTI, por exemplo. Além disso, aumentam-se os riscos de morte para mulher e bebê.
“Estatisticamente, expondo todos os riscos da cirurgia e os benefícios do parto que se perdem, quase ninguém escolhe passar por uma cirurgia sem necessidade”, explicou Beatriz Herief, médica obstetra e idealizadora da Casa Pitanga, clínica focada na assistência humanizada à mulher durante a gravidez, o parto e o puerpério. “Há três vezes mais riscos para a mãe, inclusive de morte materna, e 120 vezes mais risco para o bebê”.
Para Amorim, a oferta de João Batista Pinto não é ‘escolha’, é marketing médico”.
