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Trump preferiu ignorar o vírus “mortal”, revela livro lançado nos EUA

Em entrevistas que compõem obra do jornalista Bob Woodward, o presidente Donald Trump reconheceu que sabia da letalidade da covid-19, mas decidiu minimizar a crise, “para não criar pânico”. Especialistas em saúde e em ciência admitem a gravidade das declarações

foto: Jim Watson/AFP – 27/7/20)

Semanas antes da confirmação da primeira morte pela covid-19 nos Estados Unidos, Donald Trump tinha conhecimento de que o novo coronavírus era “mais mortal” do que uma gripe extenuante e que podia ser transmitido pelo ar. As declarações foram dadas a Bob Woodward, em uma série de 18 entrevistas que compõem o novo livro do jornalista, intitulado Rage. Todo o trabalho foi gravado, sob a autorização do magnata. O conteúdo explosivo (leia Trechos) tornou-se público nesta quarta-feira (9/9), a 55 dias das eleições de 3 de novembro. Em 7 de fevereiro, Trump disse a Woodward que o contágio pelo Sars-CoV-2 ocorre por via aérea, o que torna o novo coronavírus “muito delicado” e “bastante complicado”. “Ele é mais mortal do que sua gripe extenuante”, afirmou. O republicano fez uma revelação ao jornalista: “Eu sempre quis minimizar isso (a pandemia); ainda gosto de minimizar, pois não quero criar pânico.” Até o fechamento desta edição, o novo coronavírus tinha infectado 6.354.869 norte-americanos e matado 190.589.

O impacto das gravações foi imediato. Joe Biden, candidato à Casa Branca pelo Partido Democrata, acusou Trump de enganar a nação. “Donald Trump sabia. Ele mentiu para nós por meses. E, enquanto uma doença mortal devastava nossa nação, ele fracassou em fazer seu trabalho — de propósito”, escreveu Biden no Twitter, ao qualificar o incidente como “uma traição de vida ou morte ao povo americano”. “Prometo que, se eleito, sempre direi a verdade. Eu escutarei os especialistas e farei tudo o que puder para conter o vírus. E sempre colocarei a saúde e a segurança em primeiro lugar, não importa o custo político”, acrescentou.

 

A porta-voz da Casa Branca, Kayleigh McEnany, garantiu que a motivação de Trump era tranquilizar a população. “É importante expressar confiança, calma. O presidente nunca mentiu sobre a covid-19”, assegurou. O fato de Woodward ter guardado as entrevistas para o livro, em vez de divulgar as declarações no começo da pandemia nos EUA, suscitou um debate ético sobre a conduta do jornalista que ajudou a tornar público o caso Watergate — o escândalo levou Richard Nixon à renúncia, em 1974.

Sem estratégia

Marc Limpsitch, professor de epidemiologia da Universidade de Harvard e um dos mais conceituados especialistas em Sars-CoV-2 , lembrou ao Correio que, entre janeiro e fevereiro, estudiosos advertiram que a covid-19 era uma ameaça “excepcionalmente séria”. “Governos ao redor do mundo tomaram medidas decisivas e concertadas, enquanto Trump tratou de minimizar a doença em público. Perdemos um tempo precioso”, lamentou. “Nunca houve uma estratégia abrangente. Em consequência dessas decisões políticas, sofremos mais do que qualquer outro país, apesar de nossos excepcionais recursos financeiros e científicos.”

Professor de medicina e de saúde pública da Universidade da Califórnia (Ucla), Jeffrey Klasuner classificou Trump como um “mentiroso patológico” e afirmou à reportagem que o mandatário “falhou de todas as formas possíveis” na liderança em relação à covid-19. “Ele cometeu vários erros. Não manteve atividades importantes de resposta pandêmica criadas por governos anteriores; fracassou em ser honesto com o povo; falhou na mobilização de testatagem, no isolamento, na quarententa e no rastreamento de contatos. Não protegeu os mais vulneráveis, incluindo os idosos em asilos. Gastou milhões de dólares em drogas ineficazes, como a hidroxicloroquina.” Klasuner entende que Woodward tinha a obrigação de partilhar as informações.

Por sua vez, Michael Gerhardt, professor de direito constitucional da Universidade da Carolina do Norte (em Chapel Hill), acredita que a sucessão de erros de Trump possibilitou que a população se tornasse vulnerável ao novo coronavírus. Ele reforça que a responsabilidade do presidente era de proteger o país, não apenas a própria base eleitoral. “Algumas pessoas que votaram nele, em 2016, podem sentir-se traídas. Têm boas razões para sentirem-se assim”, disse ao Correio. Gerhardt não vê embate ético no fato de Woodward ter usado as entrevistas com Trump em seu livro. “Ele provavelmente fez algum acordo com Trump.”

De acordo com Allan Lichtman, especialista em história política pela American University (em Washington), questões éticas referem-se muito mais a Trump do que a Woodward. “As revelações deveriam levar à renúncia do presidente, mas, é claro, ele não fará tal coisa”, afirmou à reportagem. Lichtman crê que este é “o maior abandondo de dever de um presidente na história dos EUA”. “Ele não apenas mentiu para o povo, como fracassou em tomar medidas para combater o novo coronavírus, embora soubesse que era incrivelmente letal e transmitido pelo ar. Sua inação custou dezenas de milhares de vidas.”

 

Pontos de vista

 (foto: Arquivo Pessoal)

crédito: Arquivo Pessoal

Por Marc Lipsitch

Um ato deliberado
“Se correto, o relato (de Woodward) sugere que a decisão de evitar uma resposta séria ao coronavírus foi deliberada. Perdemos 150 mil vidas. Cada vez mais parece que outras pessoas sofrerão consequências de longo prazo à saúde. É difícil saber o que é pior — se isso foi feito por ignorância, quando existia tanta informação clara, ou se tratou-se de ação deliberada.”
Professor de epidemiologia da Universidade de Harvard e diretor do Centro de Dinâmica de Doenças Transmissíveis

Por Allan Lichtman

Segurança desprezada
“Cada norte-americano deve perceber que o país não pode suportar mais quatro anos de um presidente que coloca-se acima da segurança do povo. Mesmo que um número pequeno de eleitores hesitantes chegue a essa conclusão, isso poderia impactar a eleição de 3 de novembro. Lembre-se, eu previ a derrota de Trump e destaquei todas as falhas no caráter do presidente em meu livro, intitulado The case for impeachment, lançado em 2017.”
Especialista em história política pela American University (em Washington)

Por Michael Gerhardt

População enganada
“Trump está dizendo que enganou o povo americano. Não está claro por que ele fez isso, e espero que alguns de seus simpatizantes não fiquem felizes, pois acreditam em tudo o que Trump afirma. O governo federal e os funcionários de Washington tiveram de contornar a ignorância e a obstrução do presidente, a fim de enfrentar a pandemia mais séria que atingiu este país nas gerações atuais.”
Professor de direito constitucional da Universidade da Carolina do Norte (em Chapel Hill)

7 de fevereiro de 2020

Bob Woodward: “Então, sobre o que presidente Xi (Jinping, da China) falava ontem?

Donald Trump: “Oh, estávamos falando sobre o… vírus. E acho que ele ficará em boa forma, mas, você sabe, é uma situação muito complicada.”

Woodward: “Certamente o é.”

Trump: “(O vírus) Vai pelo ar, Bob. Isso é sempre mais difícil do que o toque. Você sabe, o toque, você não tem de tocar as coisas. Certo? Mas, o ar, você apenas respira o ar e é assim que ele é transmitido. (…) É mais mortal do que sua gripe extenuante.”

(….)

Trump: “Isso é mais mortal. Isso é cinco por… Você sabe, isso é 5% contra 1% e menos de 1%. Você sabe? Então, isso é uma coisa mortal.”

19 de março de 2020

Trump: “Agora, estão descobrindo que não são apenas os velhos, Bob. Hoje e ontem, alguns fatos surpreendentes foram divulgados. Não se trata apenas de vellhos — mais velhos.”

Woodward: “Sim, exatamente.”

Trump: “Pessoas jovens, também. Um punhado de jovens.”

(…)

Trump: “Bem, Bob, realmente, para ser honesto com você.”

Woodward: “Claro, quero que o senhor seja.”

Trump: “Eu quis… Eu sempre quis minimizar isso. Ainda gosto de minimizar, pois não quero criar pânico.”

 

 

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