A pesquisadora do instituto autor do levantamento Louise Marie Hurel ressaltou que a opção por essas formas de identificação não é nova. Em 2004, um projeto de lei do então deputado Eduardo Paes, ex-prefeito do Rio de Janeiro, já buscava regulamentar a utilização de biometria facial para autenticar acesso a dados tributários. No início desta década, cidades começaram a recorrer à tecnologia.
Os primeiros projetos foram fundamentalmente na área de transporte, de empresas intermunicipais que colocavam o reconhecimento como condição para o acesso a serviços. Esse setor foi responsável por 21 projetos mapeados pelo estudo. Nos últimos anos, ganhou força fundamentalmente em aplicações na segurança pública, como para o acesso a locais e monitoramento por meio de câmeras. Outras 13 iniciativas identificadas no documento têm essas finalidades.
Não somente governos mas empresas também implementaram a tecnologia. A concessionária de uma das linhas do Metrô de São Paulo instalou câmeras para analisar os sentimentos dos passageiros por meio de suas expressões faciais e subsidiar os anúncios nos vagões. A Hering, indústria especializada em vestuário, colocou sistemas semelhantes em uma loja da capital paulista com o intuito de examinar as atitudes dos consumidores, interesses e práticas como elemento a ser considerado em estratégias de marketing.
Juntamente com a disseminação desse recurso, vêm também a preocupação das autoridades. O levantamento identificou dois projetos de lei no Congresso Nacional e 21 em assembleias legislativas sobre o tema, sendo oito no Rio de Janeiro e dois em São Paulo. “O reconhecimento facial é colocado como uma espécie de bala de prata para segurança pública”, observou a pesquisadora Marie Hurel.
O Projeto de Lei 9.736, de 2018, do deputado Júlio Lopes (PP/RS), por exemplo, obriga o reconhecimento facial em presídios. O PL 11.140 de 2018, do líder do PSL, Delegado Waldir (GO), vai além, e determina registros não somente aos detidos, mas também a funcionários e até mesmo advogados que ingressem na unidades de internação.
Riscos
O professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Mafei salientou os riscos associados a essa tecnologia. O primeiro é o do viés que gera discriminação, que, segundo o professor, pode ser uma consequência tanto da lógica de funcionamento de um sistema quanto resultante dos registros utilizados para alimentá-lo. Quanto menor a diversidade dos dados inseridos, menor a capacidade do programa de identificar adequadamente determinados tipos de face, disse Mafei.
O docente citou estudos cujas conclusões revelaram margens de erros maiores para mulheres, para negros e para mulheres negras. Em algumas empresas, o nível de erro na análise de uma imagem chegava a mais de 30%. O problema é que esses “falsos positivos” podem gerar prejuízos graves, como uma prisão de alguém inocente.
“Tecnologia que objetiva o reconhecimento com margens de erros arbitrárias e a depender de como a régua é modificada, as consequências são graves. O reconhecimento facial é tão perigoso quando mal usado que não vale o risco disso ser popularizado. Seria a tecnologia dos sonhos de governos autoritários”, disse Mafei.
Idec
A advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) Bárbara Simão lembrou que pesquisas realizadas por diferentes institutos de pesquisa em países como Estados Unidos e Reino Unido mostraram um baixo nível de confiança das pessoas nesse tipo de tecnologia. Em uma dessas sondagens, apenas 7% concordaram com tecnologias voltadas ao rastreamento de seus comportamentos e direcionamento de publicidade.
Na opinião de Simão, a decisão de uma empresa por essa solução técnica deve levar em consideração uma série de critérios. O primeiro envolve considerar se ela de fato agrega algo, ou se a identificação poderia ser realizada por outros meios. A segunda diz respeito à transparência nessa operação, com relatórios de impacto. A terceira presume o direito da escolha da pessoa, e não adotar o reconhecimento facial como imposição. Por fim, são necessárias medidas antidiscriminação para impedir esse tipo de problema.
Como funciona
O reconhecimento facial começa com a coleta da imagem de um indivíduo. Um filtro verifica se o elemento em questão é uma face ou não. Em seguida, é realizada uma “normalização”, na qual as pessoas são classificadas em padrões.
No próximo passo, os traços e características do rosto são transformados em “pontos de referência”, que são analisados. Esse conjunto de informações é trabalhado como um identificador associado àquela pessoa. Em um serviço de autenticação, por exemplo, a câmera filma ou registra uma imagem e o sistema busca no banco de dados se há alguma face com determinado nível de semelhança.
* O repórter viajou a convite do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br)