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MPE apura doação de órgãos para pesquisa em serviço público

Termo ‘retenção’, em vez de ‘doação’, no documento para liberação de corpos induziria parentes a erro no SVOC, órgão ligado à USP

O Ministério Público Estadual (MPE) de São Paulo instaurou inquérito para apurar irregularidades nas doações de órgãos no Serviço de Verificação de Óbitos da Capital (SVOC). Ligado à Universidade de São Paulo (USP), o setor recebe em média 14 mil corpos por ano – cuja causa da morte precisa ser apurada. A Promotoria diz que o documento para liberação dos cadáveres para enterro é obrigatório e induziria famílias ao erro ao tratar de “retenção” de órgãos, quando se fala de “doação”. E não existiria nenhum controle sobre a destinação feita.

Muitos órgãos estão sendo simplesmente “destinados” a pesquisa e estudo com base, segundo o MPE, em um “informe aos familiares”, assinado por parentes, sem a menção expressa a possíveis doações. O Ministério Público apurou ainda que o SVOC retira vários órgãos do mesmo corpo, mesmo sem ter relação com a necropsia. Aponta ainda que, diferentemente do que está descrito no documento, a retenção não é “eventual”, mas ocorre “em inúmeros casos”.

Chamma. Uso do fígado da mãe foi descoberto após 5 anos
Chamma. Uso do fígado da mãe foi descoberto após 5 anos

Foi o que aconteceu com o aposentado Jorge Chamma, de 65 anos. Embora a mãe dele tenha morrido em 26 de abril de 2010, o filho só ficou sabendo que o fígado dela havia sido doado para estudo quando procurado pelo MPE, em maio. “Era do meu total desconhecimento. Esse documento que foi assinado por mim estava com vários outros. Naquele momento, você quer se ver livre de toda a situação. Está esperando o corpo ser liberado”, contou.

Chamma disse ter ficado “chocado” com a informação. De acordo com ele, uma universidade havia solicitado ao SVOC previamente três fígados para estudo, e o da mãe dele foi um dos encaminhados. “Parece que já tinha sido previamente combinado. Ficou uma coisa muito obscura”, reclamou. “É em nome da ciência, mas tratam como se fosse um número. Alguém pede três fígados, um pé com frieira, e eles mandam.”

Até agora, oito casos foram relatados à Promotoria, e a irregularidade foi apontada em relatório do Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (Plid), grupo do Ministério Público que atua em processos de localização de desaparecidos e identificação de óbitos. Já o inquérito foi aberto na semana passada pela Promotoria de Direitos Humanos. Neste, pede-se a alteração do documento, considerado “antiético”.

De acordo com a promotora Eliana Vendramini, já foi tentado diálogo com o SVOC, sem sucesso. Segundo ela, o problema não é a doação, mas o desconhecimento de quem a autoriza. “Muitos vieram aqui e disseram que doariam com tranquilidade, mesmo em momento de adversidade. Mas não querem ser enganados”, explicou.

Eliana questiona ainda a existência de um único documento que, ao mesmo tempo, autoriza a liberação do corpo e a doação dos órgãos. “O que eu faria se não quisesse assinar isso? Não há outro serviço em São Paulo.” Uma das saídas seria adotar modelo semelhante ao Departamento de Anatomia, da própria USP, que prevê até reconhecimento de firmas e três testemunhas da doação.

Ética. Para o presidente da Comissão de Bioética e Biotecnologia da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), Rui Geraldo Camargo Viana, nesses casos é sempre preciso que a pessoa esteja bem informada. “Esta declaração que eles apresentam não está clara.”

Para o representante do Conselho Regional de Medicina do Estado (Cremesp), Antonio Pereira Filho, não há falha ética. “É o tipo de documento que as pessoas assinam e nem leem. A retirada de órgãos até hoje não sofreu nenhuma contestação.”

Em nota, a USP informou que poderá reformular o documento a qualquer momento. Esclareceu ainda que o informe não procura estabelecer obrigatoriedades. Segundo a universidade, as autorizações de necropsia só são dadas hoje pelas autoridades policiais.

Suspeita de tráfico também é investigada

O Ministério Público Estadual (MPE) ainda suspeita da possibilidade de que haja tráfico de órgãos para pesquisa e estudo no SVOC. O Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) apura o caso em inquérito que corre em sigilo desde o ano passado.

A suspeita surgiu de outro inquérito da instituição que investigava o enterro de pessoas identificadas (com RG), mas enterradas como indigentes. Na ocasião, uma das pessoas ouvidas pelo MPE, a doméstica Maria Cecília Leão, relatou ter tentado transferir o corpo do pai do Cemitério de Perus, mas foi desaconselhada por coveiros. De acordo com ela, o corpo chegou “oco por dentro” e estava “só a pele”.

Além disso, dois comportamentos do SVOC constatados no relatório do Plid serão encaminhados para apuração: foi verificado que há acumulo de partes de corpos no serviço, que ficam quase um ano armazenadas antes de serem encaminhadas para estudo. Outra dúvida é o motivo de diversos cadáveres que passaram pelo SVOC terem os números de registro duplicados, mesmo quando as necropsias foram feitas em um mesmo ano.

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