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Milícias já estão presentes em 57,5% do território do Rio

De acordo com o “Mapa dos Grupos Armados do Rio de Janeiro”, os grupos paramilitares já ocupam na capital território maior do que o das facções

Em apenas 1,9% da área total do Rio não foi constatada a ação de qualquer grupo criminoso (Ricardo Moraes/Reuters)

Uma pesquisa inédita, que mapeou grupos criminosos no Rio, revela que as milícias já estão presentes em um quarto dos bairros da capital — que, somados, ocupam 57,5% do território do município. Os bairros onde há ação de paramilitares têm uma área quase quatro vezes maior do que aqueles onde atuam as facções do tráfico. De acordo com o “Mapa dos Grupos Armados do Rio de Janeiro”, as três facções somadas agem em bairros que perfazem 15,4% da área total da cidade. O estudo, ao qual O GLOBO teve acesso, é fruto de um convênio entre o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da UFF, o datalab Fogo Cruzado, o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, a plataforma digital Pista News e o Disque-Denúncia. A pesquisa considera a área total dos bairros onde há presença dessas organizações criminosas.

Os bairros em que foi registrada somente a ação de milicianos têm 686,75 quilômetros quadrados de área — o território total do Rio de Janeiro é de aproximadamente 1.200 quilômetros quadrados. Já as três facções do tráfico atuam, cada uma, em 11,4%, 3,7% e 0,3% do espaço do município. A área total dos bairros onde agem traficantes é de cerca de 185 quilômetros quadrados. Pouco mais de um quarto do território carioca (25,2%) ainda está em disputa entre tráfico e milícia. E em apenas 1,9% da área total do Rio não foi constatada a ação de qualquer grupo criminoso. Nessa área sem denúncias, estão bairros como Urca, Jardim Botânico, Lagoa, Campo dos Afonsos e Vista Alegre.

Para chegar aos resultados, os pesquisadores analisaram um total de 37.883 relatos que mencionam milícias ou tráfico de drogas, recebidos pelo Disque-Denúncia (2253-1177) no ano de 2019. A partir daí, seguiu-se uma triagem das denúncias para validação, compondo uma base de dados divididos entre os quatro grupos armados que agem no Rio (as três facções do tráfico e a milícia), usando três conceitos-chave: controle territorial, controle social e atividade de mercado.

Moradores são fonte

O mapa do crime será lançado oficialmente hoje, na abertura do 1º Seminário da Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança e Direitos — Milícias, grupos armados e disputas territoriais no Rio de Janeiro. O trabalho, que analisou a área total da cidade, teve participação do professor de Sociologia da UFF Daniel Hirata, coordenador do Geni. Segundo ele, era previsível um resultado que mostrasse força da milícia, mas não se esperava um domínio tão grande.

— Para a gente foi impressionante, acima do que imaginávamos. Mesmo a milícia sendo o grupo armado mais recente, ao menos considerando o seu formato atual, ela conseguiu ampliar a extensão do seu domínio dessa forma — afirma Hirata.

O pesquisador destaca a qualidade dos dados do Disque-Denúncia, não só pelo volume, mas pelo detalhismo — já que as fontes são os próprios moradores — e pela capilaridade. Para Hirata, a expansão das milícias é um tema que deveria ser mais abordado no período eleitoral, pois são quadrilhas que se aproveitam em grande parte do mercado legal e regulamentado pelo município, em especial o imobiliário e o de transporte, para se alavancar financeiramente.

— As milícias se movem na penumbra entre a legalidade e a ilegalidade, o que justificaria um trabalho profundo de investigação — explica Hirata, acrescentando que houve diversas menções à aliança entre milícia e uma das facções de tráfico nas denúncias. — Mas as milícias têm uma série de vantagens sobre o tráfico, como a diversificação de atividades, o mercado de proteção, com o discurso de segurança, que favorece a extorsão e a conivência de agentes e órgãos públicos. É uma combinação que ajuda a entender esse enorme controle territorial.

Promotor do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Rio, Fabio Correa afirma que, apesar de ainda existir sob a forma de células e franquias, a milícia caminha para um projeto de comando único no Rio.

— O projeto é se tornar uma estrutura só. Ao mesmo tempo em que a milícia é muito pulverizada, ela está em expansão, visando a um projeto de comando único.

Correa também destaca que a aliança com o tráfico de drogas beneficia os dois lados, pois enquanto o tráfico passa a vender em outros bairros, a milícia amplia sua fonte de renda. Por outro lado, o sociólogo da UFRRJ José Claudio Alves, especialista na pesquisa sobre grupos paramilitares, afirma que a milícia lidava com o tráfico de drogas desde o princípio de sua formação. Na sua opinião, a definição de “narcomilícia”, termo que vem se disseminando para ilustrar a aliança entre traficantes e milicianos, é impulsionada pelos próprios policiais, como forma de descolar a imagem da estrutura policial da milícia.

— O nascedouro da milícia é a estrutura da polícia. Então lançar a imagem de “narcomilícia” joga no colo do traficante esse grupo organizado. E é isso que justifica uma operação que mata 12 pessoas, por exemplo. Nós nunca tivemos uma operação tão violenta contra a milícia — diz Alves. — As milícias fazem propaganda como se combatessem as drogas, mas na verdade sempre negociaram e operaram junto do tráfico.

Expansão em 15 anos
O sociólogo afirma que são pelo menos 15 anos de expansão e consolidação dos grupos paramilitares, sem contar núcleos locais mais antigos, como em Duque de Caxias e Rio das Pedras. Sobre a geopolítica atual, ele destaca que Itaguaí é um vértice para dois corredores específicos, um da Zona Oeste (Jacarepaguá, Campinho, Campo Grande, Santa Cruz) e outro da Baixada (Magé, Duque de Caxias, Japeri, Belford Roxo, Queimados e Seropédica). Dentro desses corredores, há regiões ainda em disputa, mas com ascensão recente e notória da milícia, como Praça Seca e Nova Iguaçu.

— O Porto de Itaguaí é o vértice desses dois eixos e serve como estrutura que internacionaliza esse crime organizado, o lança para grandes negócios. É um ponto estratégico para contrabando de qualquer mercadoria ou drogas, fora o uso para lavagem de dinheiro no exterior, o que dificulta seu rastreamento, como fez a máfia italiana — explica o especialista, lembrando ainda que o contexto de período eleitoral pode ter influência numa operação violenta como a da última quinta-feira.

Quando se analisa o número de cariocas que vivem em bairros com atuação de traficantes ou milicianos, os grupos paramilitares também já suplantam as facções do tráfico. Aproximadamente um terço (33,1%) da população do município do Rio, o equivalente a 2.178.620 habitantes, vive em áreas onde as milícias atuam.

Já o tráfico atua em bairros onde vivem 1.584.207 pessoas, ou 24% da população da cidade. Analisando-se cada uma das três facções, os números são os seguintes: 1.198.691 habitantes (18,2%); 337.298 (5,1%); e 48.218 moradores (0,7%). Cerca de quatro em cada dez cariocas — 2.659.597 habitantes (41,4% da população) — residem em territórios ainda disputados pelas organizações criminosas.

Região metropolitana

O estudo também expandiu a análise para a Região Metropolitana. E o quadro não é muito diferente. Considerando o número de habitantes, mais uma vez a vantagem é dos milicianos, com 3.603.440 pessoas (29,2% do total de moradores dos municípios) vivendo em territórios onde os paramilitares atuam. A maior facção do tráfico tem hegemonia numa área habitada por 2.981.982 moradores (24,2% do total), seguida das outras duas facções, que agem em bairros com 445.626 (3,6%) e 48.232 (0,4%) habitantes. Pouco mais de 4,4 milhões de fluminenses (ou 36,2% do total de moradores da Região Metropolitana) residem em bairros que ainda são alvo de disputa entre milicianos e traficantes.

De acordo com o mapa, as milícias apenas são superadas quando o assunto é o número de bairros dos municípios da Região Metropolitana sob ação de cada grupo criminoso. Milicianos têm hegemonia em 199 bairros da região (21,8% do total de bairros), contra 216 (23,7%) da maior facção do tráfico; 27 da segunda maior facção (3%) e três do terceiro grupo de traficantes de drogas (0,3%). Outros 165 (18,1% do total de bairros dos municípios da Região Metropolitana) permanecem alvo da disputa dos grupos armados.

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