Pediatra teria dado remédios de venda controlada à criança e depois tentado se matar com cortes. Menino tinha sido internado em janeiro em outro caso de intoxicação por medicamento
Um quadro de depressão crônica pode ter levado uma médica do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) a matar o filho de 3 anos com uma overdose de medicamento. Juliana de Pina Araújo, 34 anos, está presa preventivamente por homicídio duplamente qualificado, por envenenamento sem chance de defesa da vítima. Ela teria dado remédios de uso controlados ao filho, João Lucas de Pina Ferreira e, depois, tentado tirar a própria vida com cortes no pescoço e punhos. A mulher está internada na ala de psiquiatria do Hospital de Base sob vigilância policial.
O crime aconteceu na tarde de quarta-feira, no apartamento onde Juliana, pediatra, morava com o filho, no Bloco J da 210 Sul. Depois de constatar que o filho estava dopado, a mulher desceu ensanguentada até o pilotis do prédio. Segundo consta na ocorrência registrada pela 1ª Delegacia de Polícia (Asa Sul), ela disse que matou o filho e estava tentando se matar. O porteiro a conteve. O vizinho do terceiro andar, Gilberto Santos, 55 anos, subiu para socorrer a criança e desceu com ela nos braços.
Gilberto contou que estava em casa quando a campainha tocou. “Era a mãe da Juliana pedindo ajuda, porque a filha tinha atentado contra a própria vida. Fui ao apartamento e vi o João. Ele estava na cama. Parecia que estava dormindo”, contou o aposentado ao Correio. Outro morador, identificado como subsíndico do prédio, buscou o carro de Juliana e o porteiro assumiu o volante. Gilberto sentou no banco de trás, com João no colo, ao lado da mãe e da avó.
Eles chegaram ao Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib) em cinco minutos. “Assim que chegamos, receberam o menino, mas, duas horas mais tarde, veio a notícia do falecimento”, lamenta Gilberto. Ele ficou no hospital até as 22h, horário da chegada da família de Juliana, a maioria de Goiânia. Naquele momento, a suspeita deu entrada no Hospital de Base.
Até a noite de ontem, a médica suspeita de praticar o crime continuava internada. A polícia apura o que a avó materna de João Lucas fazia no apartamento. O enterro da criança está marcado para 16h de hoje, no Cemitério Campo da Esperança.
Negligência descartada
Em janeiro, João Lucas foi internado em um hospital particular da Asa Norte com um quadro semelhante. Resquícios dos medicamentos encontrados no corpo da criança, na época, eram os mesmos usados por Juliana, segundo a polícia. A assessoria da unidade de saúde informou que a criança permaneceu 24 horas internada, sem “sinais de maus-tratos”. O pai, que havia se separado de Juliana, no entanto, só soube do caso em maio. Isso levou o responsável pela investigação, o delegado João de Ataliba, da 1ª Delegacia de Polícia (Asa Sul), a descartar a hipótese de negligência. “Se fosse isso (negligência), a própria mãe teria tentado socorrer o filho na quarta-feira, ou seja, não é a primeira vez. É um quadro típico de homicídio seguido de tentativa de suicídio”, ressaltou.
Peritos investigam quais remédios a mulher deu para a criança e como o menino ingeriu os medicamentos — se na mamadeira, dissolvido no leite, ou por via oral. Agentes encontraram, no quarto da criança, uma mamadeira praticamente cheia. No imóvel, apreenderam também duas cartelas vazias de Frontal, destinado a controlar distúrbios de ansiedade. Eles encontraram em uma bolsa preta uma cartela usada de Ritalina, medicamento psicoestimulante de venda controlada usado, geralmente, para aumentar a concentração.
Mãe é considerada carinhosa
Em depoimento na 1ªDP, o pai da criança, um enfermeiro de 28 anos, que pediu para ter a identidade preservada, afirmou que Juliana era uma boa mãe, mas revelou que ela começou a apresentar um quadro de depressão em 2016. “Inclusive foi essa condição que motivou a separação do casal, por iniciativa dela. O pai disse que, nos últimos anos, o quadro da ex-mulher se agravou. Vamos, agora, tentar ouvi-la para saber o que aconteceu sob a ótica dela”, comentou o delegado João de Ataliba. No interrogatório, o pai de João Lucas contou que a ex-mulher disse, recentemente, por telefone, que “o filho já estava encaminhado e ela queria engolir um bisturi”, o que deu a impressão de que ela poderia tentar tirar a própria vida.
Juliana passará por avaliação psiquiátrica e psicológica. “Se for considerado que ela tinha incapacidade de saber o que fazia ou se sabia que era errado, mas, mesmo assim, não conseguiu impedir a ação, ela pode ficar isenta do crime e até receber uma medida de segurança”, esclareceu João de Ataliba. Se condenada, Juliana pode pegar de 12 a 30 anos de prisão.
O advogado de Juliana, Leonardo Ferreira, esteve na delegacia ontem. Ele disse que precisava se atualizar sobre o caso, mas garantiu que a mulher tem problemas psiquiátricos com indicação de internação. O Correio telefonou para um irmão de Juliana, mas ele preferiu não dar entrevista. A reportagem também ligou duas vezes para o pai da criança, mas uma mulher atendeu e afirmou que ele não quer falar com a imprensa.
Incredulidade
Na manhã após a tragédia, os vizinhos estavam em choque. Uma moradora da 210 Sul que preferiu não se identificar disse que na noite anterior moradores rezaram por João Lucas. Uma faxineira do prédio contou que Juliana era querida por todos e sempre muito cuidadosa com o filho. “Eles desciam todo dia para brincar. Ele conversava com a gente. No dia (da tragédia) ele desceu sorridente, queria me ajudar a limpar os vidros”, lembrou.
Na manhã de ontem, ao lado de alguns brinquedos, a camisa da Seleção Brasileira que pertencia a João estava pendurada na janela do apartamento de um dos quartos do quarto andar, onde ele morava com a mãe.
Palavra de especialista
Raphael Boechat,
psiquiatra, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB)
“Quadros de automedicação são bastante comuns entre médicos. Depressão e suicídio, também. Inclusive há um estudo do Conselho Regional de Medicina de São Paulo que aponta que a expectativa de vida das médicas é de 59 anos. Taxa muito abaixo daquela das mulheres não médicas, de 70 anos.
O caso em questão pode corresponder a uma depressão não tratada que culminou em um infanticídio. Quando ocorre no pós-parto, a doença, geralmente, se manifesta em até dois meses. No entanto, o tempo de duração é variável. A diferença de uma para a outra é que, nesta, a mãe se culpa e se cobra. Acha que deveria estar feliz, pois o bebê nasceu saudável e todos afirmam que é um momento especial. A principal causa é hormonal, mas nunca há um único motivo.
Se considerarem que ela teve um surto psicótico, o que acredito não ser o caso, ela não pode ser culpada. O fato de ela estar deprimida, no entanto, pode ser encarado como um atenuante. Se fosse um quadro psicótico, provavelmente outras pessoas saberiam. Mas não podemos descartar essa hipótese.”