Mas tá tranquilo. A gente não tem nem que ficar esquentando a cabeça com eles. Tem que fazer o nosso papel, que daqui a pouco é nossa hora também. E quando for a gente que estiver lá um dia, fazer totalmente diferente do que a galera que está lá faz.
Hariel – Acho que tudo é um ciclo. E não existe ciclo que só sobe. Ele faz uma curva, volta, e depois sobe de novo. Não existe um ciclo reto. Eu estava falando com minha equipe e eles disseram: ‘Você conseguiu fazer bagulhos que vários caras não conseguiram em 10 anos. O que vai acontecer agora?”
E eu falei: “Mano, é página 2, já era. Vamos voltar lá para o primeiro ano. O que a gente fazia? Vamos trabalhar, igual a gente trabalhava lá.” Só que agora a gente tem outra estrutura, está em outra realidade, outro patamar.
Vamos enfrentar como se fosse o primeiro ano da minha carreira de novo. Talvez outros caras pudessem falar: “agora eu posso trabalhar menos, escolher mais.” Mas eu me desviei dessa ideia. Eu quero voltar para o começo. Claro, com o que eu tenho.
E como se manter conectado com a quebrada, onde você cresceu, da rua de onde vem a inovação do funk?
Hariel – Eu tenho que falar para você que faz tempo que eu não vou a baile de favela. Acho que é um processo natural do favelado. Chega uma idade que ele não anima muito de ir a baile. Já tem filho, família, outras prioridades.
Mas eu gosto de ficar na minha quebrada. Quando estou de folga, fico no salão que eu abri lá, dando uma força para os meus trutas. Tem uma visão de cria lá que faz uma barba, um cabelo. Troco uma ideia, jogo uma sinuca, tomo uma dose, fico lá de canto com meus amigos.
Na frente eu tenho um selo, a Shaolin Records, com uns moleques, e eu dou uma fortalecida e uma direção. Eles têm talento para caramba e às vezes não têm oportunidade.
Quando eu sonhava em viver disso… Eu sonhava tanto a ponto de conhecer certas pessoas e me decepcionar.
É difícil decepcionar essa molecada. Um estava no farol, o outro sai lá do outro lado da cidade, cata trem, metrô, tudo para cantar um funk. Você se vê ali e lembra de quando começou.
MC Hariel — Foto: Wirso / Divulgação
Na sua música mais recente, “O fim é triste”, você canta: “É que esses cara imita os gringo, eu sou brasileiro / Funkeiro nato, o coração e alma de maloqueiro”. Por quê?
Hariel – Eu quis fazer uma referência a uma rapaziada da política e da música que é fanática por americano, por uma história que não é a nossa
A história brasileira tem diversos pontos de influência de outros países. Mas também tem vários pontos a serem valorizados na história, na música, no estilo.
Esses caras idolatram mais os caras de fora do que os daqui. Acontece muito isso. Tem gente muito boa aqui que fica louca porque a rapaziada daqui mesmo não consegue dar um valor ou um incentivo. Quer criticar, zoar, caçoar das coisas brasileiras.
A letra é nesse sentido de valorizar a arte, a cultura, tudo que vem do Brasil. É daqui que a gente vem e devemos ter orgulho.
Hariel – É. O funk vai pro Grammy e o brasileiro critica. Acha que não devia estar lá. Rapaziada estranha.
E você está estrelando uma campanha do novo uniforme da seleção de futebol. Como foi isso?
Hariel – Foi foda, fiquei feliz. Eu estava com uma marca grande (Lacoste) e quando passou, chegou essa do uniforme (da Nike). Esse está sendo o melhor ano da vida em questão pessoal e profissional. Meu filho, minha família e as coisas que eu estou conseguindo.
Que eu consiga passar e abrir as portas para os outros. Que o funk comece a ter valor. É o que estamos falando, que o Brasil veja que o brasileiro não tá de palhaçada no bagulho.
Que a gente não quer só praia, samba e carnaval. A gente tem dedicação e um monte de coisa a mais do que quase todo povo do mundo. Que é garra, nunca desistir. O povo brasileiro é de carisma, de caráter, de capacidade.
É mostrar que o funk e o brasileiro também podem estar em uma campanha mundial, representar uma marca.
Djonga e MC Hariel em campanha do novo uniforme da seleção — Foto: Divulgação
– O Djonga está com você nessa campanha, e mesmo antes ele já puxava isso, de dizer que a camisa era de todo mundo, não só de um grupo.
Hariel – É isso, foda demais. Acho que é isso que a marca está tentando passar com a gente. Que (a camisa) não tem dono. Não adianta ninguém querer restringir.
Não adianta querer reprimir a gente, porque quanto mais reprime, mais a gente aparece. Djonga lá é vitória, Hariel lá é vitória. Assim como os jogadores e os atletas.
– Suas ideias fluem fácil. Como você escreve suas músicas?
Hariel – Sei lá, fumo um cigarrinho e paro para brisar na música. Eu nasci para viver isso. Já entreguei pizza, fiz um monte de coisa na minha vida. As coisas não me davam o dinheiro que me dão hoje, mas eu conseguia viver, nunca morri de fome.
Eu não preciso ficar desesperado por dinheiro. Então quando eu sento para fazer música, é o que mais me diverte.
Eu até penso em terminar minha escola para fazer uma faculdade de Letras. Porque eu gosto pra caramba de composição, fico estudando as rimas.
MC Hariel em entrevista ao g1 — Foto: GR6
– Uma das músicas mais legais do seu DVD é “Pirâmide social”. Você sabe que subiu, mas continua sendo uma pirâmide, com um monte de gente na base. Como mudar isso de verdade? Porque é comum a gente ouvir “a favela venceu” e não ter vencido mesmo.
Hariel – Acho que a favela é acostumada com o coletivo. Quando morre alguém, a favela toda sente muito. A mesma coisa se um favelado conseguiu vencer. ‘A favela venceu’ surge disso, do coletivo. Não quer dizer realmente que mudou a história e o parâmetro da favela.
De tão poucas vitórias, quando surge alguém que vence, todo mundo se vê naquilo. Não quer dizer que mudou todos os problemas, que acabou tudo. Quer dizer que um favelado está ganhando. E eu penso que para a favela vencer são anos de trabalho sério, conscientização séria, de trabalho complexo.
Porque o trabalho que é feito no alto é totalmente o contrário: é para a favela continuar perdendo mesmo. Desestruturar, deseducar, ensinar a gente a ser empregado. Não que tenha problema em ser empregado. Mas eles não nos ensinam a como pensar. Ensinam o que a gente tem que pensar.
De qualquer jeito a gente é programado para sair perdendo, sair por baixo da situação. Então, para a favela vencer, são vários anos de trabalho. Mas cada fragmento de vitória acende um pouco da esperança.
É o que a gente fala: se um menor conseguir entender o que a gente está falando, já é uma vitória gigante. Porque a gente perde todo dia, toda hora.
Então se um menor consegue assimilar, catar um livro através de uma letra de funk, largar as drogas ou aquilo que faz mal para ele no momento, consegue melhorar, aí a favela venceu de alguma forma. Ali deu um fragmento de vitória e de esperança. No coletivo é uma vitória.
– E você acha que tem melhorado entre a galera mais nova?
Hariel – A favela tem mais voz. A gente vê o favelado tendo mais espaço, vê a diversidade acontecendo forte. Mas no mundo real, quando vai para a rua mesmo, está tudo igual.
As pessoas passam fome, não têm moradia, não têm uma escola e um hospital “da hora”. Não têm o direito de lazer, quem está no baile funk toma tiro, toma bomba.
Não sei se é o início de uma nova fase, de uma era de melhoria. Não sei o que está acontecendo, mas no mundo real ainda tá tudo o mesmo.
Eu comprei um iPhone, um carro e uma casa. Mas meus amigos estão com o mesmo telefone que tinham antes. Eu tenho o Playstation 5, mas meus amigos não têm. O mundo evolui, mas na favela continua igual, e não é de hoje.