Agência brasileira operou um sistema secreto de monitoramento durante os três primeiros anos do governo Bolsonaro
A revelação de que Agência Brasileira de Inteligência (Abin) operou um sistema secreto de monitoramento durante os três primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro levantou uma série de questionamentos.
Como o GLOBO mostrou nesta terça-feira, o órgão adquiriu uma ferramenta capaz de obter a localização de cidadãos em todo o território nacional por meio de seus telefones celulares. As dúvidas ainda abertas sobre o caso vão dos critérios empregados para definir alvos ao embasamento jurídico que respaldasse o trabalho dos agentes.
O líder do governo no Congresso Nacional, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), também disse que o parlamento deve apurar a compra da ferramenta.
Já o ministro da Casa Civil, Rui Costa, afirmou que o uso do sistema será levado à Controladoria-Geral da União (CGU).
Veja, abaixo, algumas respostas sobre o caso Abin que as diferentes frentes de apuração podem alcançar.
O que é o programa secreto da Abin?
Nos três primeiros anos do governo Bolsonaro, a Abin teria operado um sistema secreto de monitoramento, segundo informações reveladas pelo GLOBO. A ferramenta, chamada “FirstMile”, ofereceu à agência de inteligência a possibilidade de identificar a “localização da área aproximada de aparelhos que utilizam as redes 2G, 3G e 4G”.
Como funciona o FirstMile da Cognyte?
Desenvolvido pela empresa israelense Cognyte (ex-Verint), o programa FirstMile permitia rastrear o paradeiro de uma pessoa a partir de dados transferidos do celular para torres de telecomunicações instaladas em diferentes regiões.
Com base no fluxo dessas informações, o sistema oferecia a possibilidade de acessar o histórico de deslocamentos e até criar “alertas em tempo real” de movimentações de um alvo em diferentes endereços.
Compra em 2018
A agência comprou o software por R$ 5,7 milhões, com dispensa de licitação, no fim de 2018, ainda na gestão de Michel Temer. A ferramenta foi utilizada ao longo do governo Bolsonaro até meados de 2021.
Procurada, a Abin disse que o sigilo contratual a impede de comentar.
No governo Bolsonaro, a Abin ficava subordinado ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI), comandado pelo general Augusto Heleno.
Quem foi monitorado?
Na prática, qualquer celular poderia ser rastreado pelo programa, com limite de 10 mil proprietários de aparelhos a cada 12 meses. Ao defender abertura de CPI, o líder do governo, Randolfe Rodrigues (Rede-AP) falou que o primeiro passo é “checar quais foram os alvos”.
Integrantes da Abin relatam que o mecanismo era usado sem a necessidade de registros sobre quais pesquisas eram realizadas. Na prática, qualquer celular poderia ser monitorado pelo programa sem uma justificativa oficial
A utilização da ferramenta gerou questionamentos internos no órgão, inclusive com relatos de sua utilização contra os próprios agentes. A polêmica resultou em um procedimento interno para apurar os critérios de utilização e a regularidade da contratação dessa tecnologia de espionagem.
Quem monitorou?
A CGU, que tem a função de acompanhar a execução de ações disciplinares, analisará se servidores estão envolvidos no manejo da ferramenta. Segundo um oficial da inteligência ouvido pelo GLOBO, o programa podia ser manejado “sem controle” e não era possível saber se foram feitos acessos indevidos.
Quais os critérios para a utilização?
Um integrante do alto escalão da Abin afirmou ao GLOBO, sob a condição de anonimato, que o sistema era operado sob a justificativa de haver um “limbo legal”. Ou seja, como o acesso a metadados do celular não está expressamente proibido na lei brasileira, a agência operava a ferramenta alegando serem casos de “segurança de Estado” — e, portanto, não estava quebrando o sigilo telefônico. Parlamentares pediram apuração diante da possibilidade de “uso pessoal da ferramenta”.
Especialistas questionam a utilização desse tipo de serviço pela Abin. A lei que regula a agência, de 1999, não prevê entre suas atividades o monitoramento de celulares nem a vigilância da geolocalização de determinados alvos. O órgão também não possui autorização legal para acessar dados privados e não esclareceu o monitoramento feito sem protocolo oficial.
Existem casos de espionagem no governo?
Casos como esse não são tão inéditos assim. Interferências na Abin, Relembre outros casos de espionagem na política brasileira:
Relatório para clã Bolsonaro
Alexandre Ramagem (PL) esteve à frente da Abin durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), quando o órgão operou o sistema secreto de monitoramento da localização de cidadãos. Enquanto diretor do órgão, em várias ocasiões, Ramagem foi acusado de usar a estrutura da agência para atender a interesses do ex-presidente.
Antes da denúncia desta terça-feira, Ramagem foi alvo de acusações por suspeita de favorecer os interesses do clã Bolsonaro. Em 2020, a revista Época revelou que a Abin teria produzido ao menos dois relatórios de orientação para o senador Flávio Bolsonaro e seus advogados no pedido de anulação da investigação do escândalo das rachadinhas. A autenticidade e procedência foram confirmadas pela defesa do senador.
No ano passado, O GLOBO mostrou que um agente disse à PF que recebeu missão extraoficial para levantar informações de negócios envolvendo Jair Renan, o filho mais novo do presidente.
Flagrado numa operação, o agente admitiu em depoimento que recebeu a missão de levantar informações de um episódio relacionado ao “04”, sob apuração de um inquérito da PF. Segundo o espião, o objetivo era prevenir “riscos à imagem” do chefe do Poder Executivo.
Pegasus
Em maio de 2021, uma reportagem do portal UOL mostrou que o filho do presidente Jair Bolsonaro e vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos) buscou intervir em um edital federal, de modo a promover a aquisição do serviço da Pegasus, um sistema de espionagem israelense produzido pelo NSO Group.
A ação, segundo o site, gerou insatisfação em militares que integravam o Gabinete de Segurança Institucional e a Abin, que teriam sido deixados de fora das tratativas. Segundo o veículo, dias após a reportagem, a empresa israelense deixou a licitação.
Em julho daquele ano, uma investigação conduzida por 17 meios de comunicação ao redor do mundo (incluindo The Guardian, Washington Post e Le Monde), fez uma denúncia.
Segundo a investigação, mais de 50 mil jornalistas, empresários, defensores de direitos humanos, líderes religiosos e até chefes de Estado de dezenas de países tornaram-se potenciais alvos de espionagem pela Pegasus. O Brasil não figurou na lista.
No entanto, apesar disso, e-mails vazados pela WikiLeaks expuseram que, em 2015, a Polícia Federal brasileira estava no topo do ranking dos maiores fregueses da Hacking Team, empresa italiana concorrente da Pegasus no mercado de invasão de celulares à distância.
Maletas antigrampo no Senado
Em uma ação em decorrência da operação Lava Jato, em outubro de 2016, a Polícia Federal prendeu o então diretor da Polícia do Senado, Pedro Ricardo Araújo, e três auxiliares dele acusados de atrapalhar a apuração do esquema de corrupção na Petrobras.
Segundo a PF, varreduras contra grampos feitas pela Polícia Legislativa teriam beneficiado o ex-presidente da República José Sarney (PMDB), os senadores Fernando Collor (PTC-AL) e Gleisi Hoffmann (PT-PR) e o ex-senador Edson Lobão Filho (PMDB-MA). A PF apreendeu mais de dez maletas antigrampo.
Os policiais foram acusados de fazer o serviço de contraespionagem em casas e escritórios de Sarney, Collor, Gleisi e Lobão Filho com o objetivo de descobrir se os quatro políticos estavam sendo alvo de escutas ambientais ou telefônicas da Operação Lava Jato.
Três anos depois, em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) manteve a validade de parte das provas obtidas na Operação Métis, determinando que as maletas usadas por policiais legislativos do Senado para varreduras antigrampo continuassem apreendidas. Na mesma ocasião, o STF autorizou que a Procuradoria-Geral da República analisasse as tais maletas.
O que significa a sigla Abin?
Semelhante ao FBI dos Estados Unidos, a Abin é a Agência Brasileira de Inteligência.
(Com O Globo e Estadão)