Forças Armadas fazem última ação interministerial do ano, com o Ministério da Saúde, em área indígena no âmbito da Operação Covid-19. Ausência de médicos especialistas é apontada como principal gargalo na região
Tabatinga e Campo Alegre (AM) — “‘Pra proteger’”, respondeu um indígena Ticuna, na barreira formada na entrada da aldeia Umariaçu II quando perguntado sobre o motivo pelo qual segurava um cassetete de madeira. “Para proteger”, ou “yigünatadaugü”, em Ticuna, que é a maior etnia indígena do país. A aldeia fica em Tabatinga (AM), região do Alto Rio Solimões, onde faz fronteira com o Peru e a Colômbia. A barreira existe há alguns anos para controlar a entrada na aldeia, que fica tão próxima da cidade que parece um bairro do município, mas, agora, fiscaliza, também, o uso de máscara de proteção contra o novo coronavírus. E mais do que o controle, a comunidade se protege do vírus com medicina tradicional, com chás, mel de uma abelha preta e óleo de copaíba produzido por eles. Com isso, dizem não sentir medo do “corona”.
A crença nos remédios caseiros ficou evidente na visita da reportagem a Umariaçu II e Campo Alegre (esta fica no município de São Paulo de Olivença, também no Amazonas) para acompanhar o trabalho das Forças Armadas. Na última semana, 27 militares que atuam na área da saúde deram um reforço importante ao fazer a última missão do ano em terras indígenas no âmbito da Operação covid-19 em parceria com o Ministério da Saúde. Os indígenas apontam que os medicamentos caseiros são aliados com a medicina ocidental, ou do “homem branco”, como chamam. E o atendimento dos profissionais chega justamente em uma região cujo principal gargalo apontado é a ausência de médicos especialistas.
Assessor-técnico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Carlos Colares ressalta que a missão surge em um momento em que a orientação da secretaria é de que os indígenas evitem sair das aldeias, a fim de impedir a contaminação pelo novo coronavírus, que já matou 35 indígenas na região e contaminou 1,9 mil. “Não adiantava esperar acabar o período de pandemia. Analisamos dados e vimos a necessidade de trazer médicos especialistas”, explica. Entre os médicos, estavam ginecologistas, pediatras, infectologista, generalista, além de técnicos de enfermagem, enfermeiros e dois veterinários.
Cinco aldeias foram visitadas, sendo a mais distante a 305km de Tabatinga, já integrando o município de São Antônio do Içá. Nelas, concentravam-se indígenas de outras comunidades do Alto Solimões que se deslocaram para serem atendidos. O atendimento é comemorado pela população nas duas aldeias visitadas (Umariaçu II e Campo Alegre). Esta última fica a 17km de São Paulo de Olivença e a 94km de Tabatinga. Em toda a região, os deslocamentos são feitos de barco.
As receitas médicas permanecem aliadas com chás de folhas da região; ou mistura de jambu, com limão e alho, além de uma fumaça gerada com a queima do favo de uma abelha preta e que se espalha pelas casas e ruas das aldeias. “Não temos medo (do coronavírus), porque temos a cura”, responde Delclécio Vieira Souza, de 60 anos, morador de Umariaçu II, quando falava dos remédios caseiros, enquanto aguardava uma consulta médica na aldeia, que já teve 152 casos de covid-19.
Presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) do Alto Rio Solimões e ex-cacique da aldeia, Sildonei Mendes da Silva conta que, no começo, todos ficaram aflitos com a chegada de informações sobre o vírus e de que os indígenas estavam no grupo dos mais vulneráveis. Ficaram mais tranquilos quando descobriram alguns remédios da medicina tradicional. Às segundas-feiras, o ex-cacique passava nas ruas fazendo o que ele chama de “defumação da comunidade”, com a fumaça oriunda da queima do favo de abelha.
A gente viu que a nossa medicina estava tendo efeito”, conta. Houve, segundo ele, muito trabalho de conscientização da comunidade, com explicações sobre o fato de que é preciso adaptar ao “tempo” de hoje, com uso de máscara e reforço na higiene. De acordo com ele, os indígenas nunca enfrentaram nada parecido, apesar de tantas doenças que atingiram essa população ao longo da história. Para o ex-cacique, no entanto, graças ao uso da medicina tradicional, a aldeia teve apenas duas mortes entre 5,5 mil indígenas. “Especialistas falam que somos o grupo mais frágil, mas isso mostrou que a gente não é tão frágil assim”, diz.
Os relatos de confiança nos remédios caseiros, entre chás, jenipapo (para passar no corpo) e o óleo de copaíba se repetem. A cacica de Umariaçu II, Trindade Bernaldino Fidelis, de 52 anos, agradeceu imensamente a chegada de médicos e enfermeiros das Forças Armadas ao local e disse que o medo inicial foi grande. “Usamos os remédios tradicionais, o que nos mantém, agora, vivos”, conta ela, que se diz esperançosa com a vacina. “É muito importante receber essa equipe aqui, com especialistas. É um fato inédito para nós dentro da comunidade”, relata.
Em Campo Alegre, a lógica se repete. A cacica Luciana Custódia Marques, 40 anos, ressalta que, antes, no início da pandemia, quando tiveram duas mortes, a população corria para se esconder em casa quando chegava algum visitante. Mas, logo, segundo ela, a comunidade aprendeu a se cuidar contra o vírus utilizando o mel e o favo de uma abelha preta. “As coisas melhoraram depois do remédio da aldeia”, explica. Mas, isso não significa que deixam de tomar remédios receitados por médicos ou de comemorar a ida de profissionais da saúde.
O primeiro-tenente e clínico geral Jomar Alves de Souza, de 37 anos, em sua primeira missão em aldeias, explica que os indígenas sempre comentam sobre os chás que estão tomando contra o novo coronavírus. “Não cabe a nós fazer choque de medicinas. O que eu digo é que toda bebida é hidratação, então, terá seu benefício. Você o orienta a procurar atendimento se tiver cansaço, com dor, febre, e que pode tomar o chá, mas que precisa fazer, também, o uso da medicação indicada e seguir as orientações”, explica.
Hospitais
A importância de levar profissionais da Saúde das Forças Armadas às comunidades fica clara com um receio recorrente entre os indígenas de serem levados a hospitais na cidade. O entendimento geral é que, quem vai ao hospital, não volta. Por isso, preferem se cuidar nas aldeias. Os agentes de saúde, em sua maioria indígenas, orientam a comunidade com medidas de higiene.
Além disso, apesar de ambas as aldeias visitadas pela reportagem terem um espaço para atendimento com uma equipe multidisciplinar (clínico geral algumas vezes por semana, enfermeiros e dentista, além dos agentes de saúde), a ausência de médicos especialistas é um problema sério. Caso seja necessário consulta com alguma especialidade, é preciso se deslocar para Manaus, que fica a 1,1 mil km de Tabatinga. A dificuldade é tamanha, que se ouve relatos de mulheres que nunca foram a um ginecologista.
Pela primeira vez na história das duas aldeias, os chefes dos indígenas são duas mulheres. Em Umariaçu II, a cacica Trindade Bernaldino Fidelis, de 52 anos, é a primeira mulher a ocupar o posto em 46 anos. Em Campo Alegre, Luciana Custódia Marques, de 40 anos, é a primeira em mais de meio século de existência da aldeia. “É uma experiência nova para a aldeia. Muitas vezes é mais fácil, porque por ser mulher os homens ajudam mais”, conta Luciana, ressaltando que os homens respeitam a sua liderança. A escolha se dá por meio de votação.
Última ação
Esta foi a última missão do Ministério da Defesa em parceria com a pasta da Saúde no ano de 2020 em terras indígenas, no âmbito da Operação Covid-19. A Defesa diz ter outras duas operações prontas para serem executadas (uma, inclusive, estava planejada para este ano). Falta o aval por parte da Saúde. Assessor técnico da Sesai, Carlos Colares justifica que ações interministeriais são complexas, e é preciso analisar as disponibilidades de ambas as pastas. De acordo com ele, há duas ou três operações planejadas para o próximo ano, aguardando a virada do ano para checar questões financeiras. “Vamos conversar ainda este ano para deixar o planejamento para o próximo”, garante.
Mulheres cacicas
Pela primeira vez na história das duas aldeias, os chefes dos indígenas são duas mulheres. Em Umariaçu II, a cacica Trindade Bernaldino Fidelis, de 52 anos, é a primeira mulher a ocupar o posto em 46 anos. Em Campo Alegre, Luciana Custódia Marques, de 40 anos, é a primeira em mais de meio século de existência da aldeia. “É uma experiência nova para a aldeia. Muitas vezes é mais fácil, porque por ser mulher os homens ajudam mais”, conta Luciana, ressaltando que os homens respeitam a sua liderança. A escolha se dá por meio de votação.
Missão Alto Solimões
No âmbito da Operação covid-19, militares das Forças Armadas empenharam-se para atender indígenas pelo país durante a pandemia. A última missão de 2020 foi em uma região do Amazonas onde há a segunda maior população indígena do Brasil e que fica na tríplice fronteira com Colômbia e Peru
Período: 7 a 14 de dezembro
Número de aldeias: 245
Objetivo: levar insumos de saúde e médicos especialistas à região, que tem ausência do serviço, assim como orientar a população
Polos de atendimento: cinco
Etnia predominante: Ticuna
Número de indígenas na região: 69,3 mil
População atendida: 16,8 mil, sendo cerca de 8,4 mil consultas
Número de profissionais: 27, entre médicos, veterinários e enfermeiros
Óbitos de indígenas por covid-19 na região*: 35
Casos confirmados*: 1,8 mil
Número de cidades na região: 15
Operação covid-19
Duração: 240 dias
Missões entre Ministério da Defesa e da Saúde: 19 dessas, 16 voltadas a indígenas
População beneficiada: 155,2 mil indígenas
Atendimentos: 63,8 mil
Toneladas de insumos de saúde transportadas a indígenas: 54,5 mil
Profissionais envolvidos: 401
Militares
Efetivo na operação: 34 mil
Contaminados nas Forças Armadas: 30.165 — 10% do efetivo total
Mortos por covid-19**: 40
*4/11/2020, Sesai
**6/12/2020, Ministério da Defesa