Muito embora os EUA tenham a capacidade para montar um pacote trilionário de ajuda à população, resposta ineficaz à crise sanitária tem gerado preocupações
Em meio à pandemia de covid-19, crescem os questionamentos sobre o papel e o espaço da maior entre todas as economias e de sua moeda no mundo.
Muito embora os Estados Unidos tenham tido a capacidade de montar um pacote trilionário de ajuda à população, a resposta ineficaz dada até agora à crise sanitária tem gerado preocupações.
Mais recentemente, isso pôde ser visto no enfraquecimento do dólar perante as principais moedas. O Dollar Index — que compara a moeda norte americana com uma cesta formada por iene (Japão), libra esterlina (Reino Unido), dólar canadense (Canadá), coroa sueca (Suécia) e franco suíço (Suíça) —, já perdeu cerca de 10% em valor desde seu pico, em março, quando a pandemia foi decretada, fazendo o dólar atingir o menor nível em dois anos.
“Durante anos após a grande crise financeira de 2008, os EUA cresceram mais que outros países desenvolvidos, ajudando a fortalecer o dólar por apresentar alternativas de investimento mais rentáveis a agentes econômicos”, diz a Kairós Capital em carta de junho.
A moeda seguiu no auge mesmo com a perda relativa de importância dos EUA na economia mundial, que foi de 40% do PIB global em 1960 para os atuais 25%:
“Esse diferencial de crescimento que já vinha sendo reduzido em 2019 pode diminuir ainda mais, a depender de como cada país lidará com a perda de atividade e renda e da magnitude e eficácia dos estímulos governamentais para fazer à crise”, diz.
Cuidado com a zona do euro
Os países da zona do euro lidaram melhor com a crise sanitária do que os EUA, que, há meses, lideram o número de mortes e casos de covid-19 no mundo, e ainda não conseguiram controlar a doença nos estados do Sul.
Enquanto isso, a União Europeia não só já está num processo bem mais avançado de reabertura, como avança na consolidação fiscal, com a aprovação de um pacote de 750 bilhões de euros para recuperar a economia do bloco.
“Eu não me surpreenderia se o bloco do euro saísse da pandemia com algum poder relativo renovado”, diz Fernando Ribeiro Leite, professor do Insper.
Segundo Leite, a Europa se mostrou mais forte do que parece nesta crise, com exemplos como a Alemanha que, além de ter sido bem sucedida no combate ao vírus, prepara para a agenda pós-pandemia uma retomada com base numa indústria sólida e moderna, tecnologia, agenda sustentável, verde e capital humano inigualável, diz.
Para a Kairós, a União Europeia, junto com EUA e China, caminha para a formação de um mundo tripolar. E esse processo levado agora pela consolidação fiscal começou há mais de 20 anos com a criação do euro.
Não é de hoje
Apesar de o coronavírus ter levado os ânimos ao extremo, tirando um pouco do brilho do dólar, a moeda já vem sendo ofuscada há alguns anos.
Um dos movimentos que demonstra que essa preeminência do dólar vem lentamente cedendo, diz a Kairós, refere-se à composição das reservas internacionais mantidas por bancos centrais ao redor do mundo.
Em 1999, quando o euro foi criado, 71% das reservas mundiais eram mantidas em dólares, segundo o FMI. Essa porcentagem estava ao redor de 61% pelo último dado disponível.
O aumento da importância relativa de outras moedas, como o próprio euro e o iene, ajudou nesse processo, mas a tendência se intensifica, segundo a casa de análise, estimulada pelo instinto de proteção de autoridades monetárias contra o uso que os EUA passaram a fazer do dólar como instrumento de pressão:
“Vimos o exercício desse poder para dificultar a participação de economias como Irã e Venezuela no sistema de comércio internacional, assim como vimos a partir de 2014 sanções para instituições bancárias que integram o sistema de pagamentos em dólar e realizam transações com a Rússia”, diz.
Ao longo do tempo, diz a casa, esse uso como fonte de pressão somada à diminuição do tamanho relativo da economia americana tenderá a gerar um aumento na busca de alternativas:
“E num mundo em que há vários atores importantes do ponto de vista econômico como a China e a Zona do Euro, a moeda de uma economia que representa menos de um quarto da economia mundial deverá ter dificuldades crescentes para permanecer como a única moeda de reserva do planeta”, diz.
Não tem para ninguém
Ainda que, num futuro distante, não seja descartada a perda de relevância da moeda americana no mundo, atualmente, o dólar é usado na imensa maioria das transações internacionais. Além disso, essas movimentações são feitas, na maioria das vezes, dentro de um sistema de pagamentos ligado a instituições americanas.
“Os agentes são pragmáticos. Que moeda dá mais acesso a mais mercados? Não parece que o dólar vai perder espaço até onde podemos ver”, diz Maurício Fronzaglia, professor de política internacional do Mackenzie. “Já num futuro mais distante, isso depende do crescimento da Europa e da China”, diz.
A questão, segundo Fronzaglia, é que muito dificilmente um país ou um conjunto de países, no caso da UE, conquistar o poder alcançado pelos EUA nos setores militar, político, econômico e cultural:
“Não têm uma nação que consiga rivalizar com eles nesses quatro aspectos conjuntamente”, diz.