Sei que o BC estabelece o piso das taxas na economia olhando mais para o futuro do que ao passado. Mas há algo estranho na dicotomia entre inflação e Selic
Não tenho diploma de economista pendurado na parede, mas acompanho as idas e vindas da economia desde que comecei minha carreira como repórter da finada Gazeta Mercantil. E estranhei uma notícia veiculada ontem nos meios eletrônicos (hoje, em alguns jornais impressos): o Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna (IGP-DI) mostrou uma alta de 2,34% em julho, diante de 1,60% de junho, segundo a Fundação Getúlio Vargas. Isso significa uma inflação acumulada de 6,98% em 2020 e de 10,37% o longo dos últimos 12 meses.
OK, o IGP-DI não é o indicador oficial de alta de preços no Brasil. Mas como é que um índice de inflação mensal (2,34%) é maior que a taxa básica de juros no país, a Selic (2 % ao ano)? Sei perfeitamente que o Banco Central estabelece o piso das taxas na economia olhando mais para o futuro do que ao passado. Mas há algo estranho nessa dicotomia entre inflação e Selic.
Em primeiro lugar, falemos um pouco da lógica que existe por trás da apuração do Índice Geral de Preços. Em linhas gerais, 60 % deste indicador é formado pela oscilação dos preços do atacado; 30 % são relativos aos preços ao consumidor e 10 % à construção civil (as variantes do IGP têm mais a ver com períodos de captação do que com a carteira em si).
Ocorre que a cotação do dólar, que continua se mantendo acima dos R$ 5,00, provocou diretamente alta no mercado atacadista e na construção civil. Isso acabou puxando para cima a variação de todos os IGPs.
A situação econômica, no entanto, é de penúria e o consumo ainda está muito travado. É por esta razão que o Índice de Preços ao Consumidor Ampliado continua mantendo a mesma projeção para 2020, de 3,50 %. Ou seja, elevações de preços no atacado não são repassados para as etiquetas no varejo, o que segura o IPCA.
Ao mesmo tempo, há um instrumento real para pressionar a inflação – a expansão da base monetária. Desde março, houve um crescimento de 30 % naquilo que os economistas chamam de M1 (papel-moeda e moeda metálica em poder do público e os depósitos à vista nos bancos comerciais). O aumento da impressão de notas, diga-se, é uma das razões clássicas para a carestia, quando se cria um descompasso entre a riqueza de fato gerada por uma nação e o volume de moeda em poder da população e nos bancos. Isso ocorreu bastante no Brasil até a chegada do Plano Real em 1994 e uma das principais razões para se vigiar tanto o crescimento do déficit público.
A atividade econômica reduzida pode aplacar a ameaça do dragão inflacionário por enquanto. Mas e se houver o que todos desejam, a volta de um círculo virtuoso de retomada das atividades do comércio e do mercado business-to-business? Estaremos com todas as condições para ver os preços subirem de uma hora para outra.
Mesmo assim, o IPCA registra, em seus escaninhos, alguns sinais que provocam preocupação. Um deles, por exemplo, é o fato de que nos sete primeiros meses do ano, houve uma alta de 7 % nos preços dos alimentos – um dos segmentos que continuou em alta apesar da recessão que se abateu no mercado brasileiro após a pandemia resultante do novo coronavírus.
Diante desse quadro, é sensato reduzir ainda mais a Selic, que passou de 2,25 % para 2,00 %? Alguns economistas, como Armínio Fraga, já admitem que existe a possibilidade de se chegar à marca de 0 % ao ano. Para Fraga, por exemplo, isso só não acontecerá porque “mostraria que as coisas estão muito ruins”, como afirmou o ex-presidente do Banco Central ao jornal Valor Econômico.
Os economistas mais ortodoxos, porém, estão preocupados com o nível alto dos gastos públicos e em seus efeitos diretos na economia, em especial à inflação. Para estes profissionais mais conservadores, este seria o momento de elevar a Selic e não a baixar, como fez o Comitê de Política Monetária. Outra corrente, no entanto, acredita que a elevação nos juros básicos da economia seria uma admissão pública de que haveria gastos públicos desenfreados num futuro próximo – e a única forma de frear seus efeitos na economia seria elevar as taxas. A decisão bancada pelo governo (baixar os juros) pode até funcionar, mas seus executores terão de acompanhar com lupa as variações das taxas de consumo. Qualquer descuido, neste caso, pode comprometer a inflação, a recuperação econômica e a expansão dos negócios.