A Noruega, que encabeça os rankings globais de igualdade, bem-estar e mobilidade social, viu crescer a diferença entre ricos e pobres. Em meio ao avanço da centro-esquerda, candidato eleito prometeu taxar mais as grandes fortunas e dar voz às ‘pessoas comuns’.
A pobreza não chega a ser um problema grave na Noruega, onde menos de 1% da população vive em condições consideradas precárias, a renda familiar média equivale a R$ 187 mil por ano (o triplo da brasileira) e onde a distância entre ricos e pobres é uma das menores do mundo.
Com uma ampla rede de benefícios sociais — educação gratuita, saúde pública e licença parental de 12 meses entre pais e mães —, o país nórdico é listado por alguns rankings internacionais como o mais igualitário do mundo.
Apesar disso, a desigualdade social (junto a temas como mudanças climáticas e transição energética) foi um fator decisivo na eleição mais recente da Noruega, a ponto de o candidato vencedor dizer que havia chegado “a vez de as pessoas comuns” ganharem voz.
O oposicionista Partido Trabalhista, de centro-esquerda, saiu vencedor do pleito geral da Noruega e vai formar uma coalizão para substituir o governo conservador, que ocupou o poder pelos últimos oito anos.
Jonas Gahr Stoere, líder trabalhista que será o premiê, fez uma campanha focada em como enfrentar a desigualdade crescente no país e sob a defesa da taxação dos mais ricos.
Isso chama a atenção em um país pequeno (5,4 milhões de habitantes), excepcionalmente próspero (dono do maior fundo soberano de petróleo do mundo, com US$ 1,4 trilhão), detentor de alguns dos melhores indicadores sociais do planeta e onde a igualdade é um valor fortemente enraizado.
Os noruegueses lideram o Índice de Bem-Estar mais recente da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE) e ocupam o segundo lugar no Índice de Mobilidade Social 2020 do Fórum Econômico Mundial (FEM), que leva em conta proteção social e distribuição justa de salários.
A edição mais recente do Índice de Desenvolvimento Inclusivo do FEM também é encabeçada pela Noruega, ao avaliar métricas de progresso que vão além do mero crescimento econômico — por exemplo, Produto Interno Bruto per capita, emprego, produtividade, expectativa de vida, pobreza e renda média familiar.
É, também, um dos países com maior igualdade de oportunidades entre homens e mulheres.
Como, então, a desigualdade virou um problema?
Salários, moradia e impostos
Dados oficiais compilados pela agência de notícias Reuters apontam que a proporção de crianças norueguesas vivendo em lares de baixa renda cresceu de 3,3% em 2001 para 11,7% em 2019. Um estudo de 2016 apontava a vulnerabilidade, em particular, das crianças filhas de imigrantes: 36% delas viviam em condições consideradas precárias.
Ao mesmo tempo, o preço da moradia subiu mais do que os salários e ficou seis vezes mais caro no país nos últimos 30 anos. Além disso, segundo a OCDE, os 20% mais ricos da Noruega têm renda quatro vezes maior do que os 20% mais pobres, despertando uma crescente insatisfação entre as “pessoas comuns” citadas pelo futuro premiê Stoere.
E, apesar de a Noruega taxar fortunas, esses super-ricos ainda pagam proporcionalmente menos impostos do que o restante da população.
Esse descontentamento foi explorado por Stoere, que prometeu redução de impostos para famílias de renda média e baixa e taxação maior para os 20% mais ricos — incluindo a si mesmo, uma vez que o político é herdeiro de uma fortuna estimada em US$ 16 milhões.
Até então, o governo conservador norueguês vinha aumentando o controle sobre a imigração e reduzindo impostos em geral.
“Direitos e oportunidades iguais têm de ser garantidos”, afirmou Stoere à Reuters antes das eleições. “A desigualdade cresceu nos últimos anos, então a distribuição mais justa [de recursos] será uma base da nossa política.”
Colocando em perspectiva
É bom, porém, colocar esse mal-estar norueguês em perspectiva com a situação no Brasil.
Aqui, estima-se que 19,3 milhões de pessoas — ou seja, três vezes e meia a população total da Noruega — vivam na pobreza extrema, com renda mensal inferior a R$ 469 — e, portanto, sob situação de insegurança alimentar.
No país nórdico, a renda familiar média anual pós-impostos, mensurada pela OCDE, é de US$ 35,7 mil (ou R$ 187 mil na cotação atual), quase o triplo da brasileira, de US$ 12,7 mil (média que esconde as abismais desigualdades de renda entre ricos e pobres no Brasil).
Se aqui os mais pobres têm dificuldade para bancar despesas básicas como comida e aluguel, a preocupação na Noruega é que dois em cada dez pais/mães solteiros não conseguem arcar com os custos de tirar férias e que 19% da população não tem renda sobrando para despesas inesperadas.
Ou seja, de modo geral, os noruegueses ainda desfrutam de um padrão de vida acima da média até para os países mais ricos e têm uma das maiores expectativas de vida do mundo (83 anos).
Na prática, os noruegueses vivem em média oito anos a mais que os brasileiros, que perderam quase dois anos de expectativa de vida por conta das mortes na pandemia (dos 76,7 anos anteriormente projetados para 74,8 anos).
Vale destacar que, longe de ser um problema apenas brasileiro (ou, em proporção muitíssimo menor, norueguês), a desigualdade social tem crescido para dois terços da população mundial, segundo um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2020.
“Uma das consequências da desigualdade entre as sociedades é o baixo crescimento econômico. Nas sociedades desiguais, com grandes disparidades em áreas como saúde e educação, as pessoas têm mais probabilidade de permanecer presas na pobreza, ao longo de várias gerações”, afirmou a ONU.
Avanço da social-democracia no norte da Europa
De qualquer modo, a eleição norueguesa ganhou holofotes na Europa por colocar em debate um possível avanço da centro-esquerda em parte do continente, justamente em um momento de fragmentação política e avanço da ultradireita em todo o mundo.
Pela primeira vez desde 2001, os quatro principais países nórdicos (Dinamarca, Finlândia, Suécia e, agora, Noruega) têm premiês sociais-democratas (movimento cuja raiz é fincada em acesso a serviços públicos e redução das desigualdades).
Se colocarmos a pequena ilha da Islândia na conta, esse predomínio da social-democracia justamente em seu bastião mais simbólico do mundo — a região da Escandinávia — não ocorria desde os anos 1950.
O próximo país a se ficar de olho é a Alemanha: a maior economia da Europa vai às urnas em 26 de setembro para decidir o sucessor da chanceler (premiê) Angela Merkel, que ficou 16 anos no poder e sai com índices satisfatórios de popularidade.
Lá as pesquisas indicam que o atual ministro das Finanças (e vice-premiê) Olaf Scholz, do Partido Social Democrata, é o favorito para vencer o pleito.
Em entrevista à agência de notícias France Presse, a pesquisadora Elisabeth Ivarsflaten, da Universidade de Bergen, na Noruega, apontou que o Partido Trabalhista norueguês parece ter se beneficiado de um anseio por um Estado mais forte e por menos desigualdades, sentimento impulsionado pela pandemia.
Mas essa nova centro-esquerda continua sob forte pressão do populismo de direita e, em países como a Dinamarca, se viu forçada a adotar políticas caras a grupos direitistas, como o duro controle migratório, diz Ivarsflaten.
Além disso, a vitória eleitoral não se traduz em grandes índices de popularidade ou na capacidade de governar por conta própria, sem depender da formação de coalizões com outros partidos.
“Os social-democratas costumavam ser muito mais fortes, mas agora há uma fragmentação e não há mais grandes partidos”, disse ao jornal britânico “Financial Times” o ex-premiê sueco Carl Bildt, político alinhado à centro direita. E a fragmentação, diz Buildt, “torna a governança uma tarefa mais difícil”.
No fim das contas, “é uma social-democracia enfraquecida”, concluiu o cientista político Jonas Hinnsfors, da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, em entrevista à France Presse. Para ele, o sucesso eleitoral recente da centro-esquerda se deve mais às divisões entre os grupos de direita do que a um renascimento da esquerda.