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Após queda de 61% de cirurgias eletivas, médicos veem explosão de demanda

Em março, o Ministério da Saúde orientou estados a adiarem cirurgias eletivas, como uma forma de poupar leitos e evitar infecções pela covid-19

Pessoa internada em Hospital em São Paulo com covid-19: ocupação dos leitos, que em sua maioria continua voltada para as vítimas da pandemia, também caiu da taxa média de 80% para até 30%. (Rodrigo Capote/Bloomberg/Getty Images)

Entre março e junho, quatro primeiros meses da pandemia, o Brasil fez cerca de 388 mil cirurgias eletivas (não urgentes) a menos no SUS, conforme dados do Ministério da Saúde, na comparação com a média dos cinco anos anteriores. A queda é de 61,4%. Com a flexibilização do isolamento social na maior parte do País e a retomada das operações, profissionais de saúde preveem alta expressiva da demanda.

Em março, o Ministério da Saúde orientou estados a adiarem cirurgias eletivas, como uma forma de poupar leitos e evitar infecções pela covid-19. A recomendação foi reforçada mais tarde pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Com a pandemia, os leitos ficaram perto da ocupação máxima em muitas regiões. Só no Estado de São Paulo, houve diminuição de quase 175 mil (cerca de 59%) dos procedimentos eletivos de março a junho.

O problema, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão, é que muitos dos pacientes com cirurgias adiadas agora sofrem com a demora para remarcar as intervenções na rede pública, enquanto seus quadros se agravam. Já no sistema de saúde suplementar, a rede privada diz ver queda de até 20% da receita esperada para o ano.

“A segunda onda provavelmente não será causada pela covid-19, mas pela quantidade enorme de pacientes que retornarão para serem tratados por outras doenças em situação muito pior do que se encontravam antes da pandemia”, diz Gustavo Judas, presidente da Sociedade de Cirurgia Cardiovascular de São Paulo. Ele estima que o cancelamento de mais da metade dos procedimentos cardíacos pode criar um gargalo de até um ano nos hospitais.

No último dia 27, o governo paulista mudou os critérios do plano estadual de flexibilização da quarentena para que municípios com taxa de ocupação de UTI inferior a 75% pudessem ir para fase 4 (verde) – a regra antes previa ter menos de 60%.

A mudança havia sido defendida pela Prefeitura da capital, como forma de liberar mais leitos antes reservados para a covid-19 e retomar a marcação de cirurgias eletivas, uma vez que houve desaceleração do contágio na cidade. Hoje, a capital está no nível 3 (amarelo) de cinco fases de flexibilização. Procurada, a Secretaria Municipal de Saúde não informou o número de procedimentos cancelados.

Beatriz Paiva Santos, de 13 anos, tinha cirurgia marcada para abril na rede pública de São Paulo, quando deveria tratar sua escoliose, um desvio da coluna. O pai da jovem, o empresário Gil Santos, de 68 anos, aguarda vaga para remarcar e se preocupa. “O agravante é que a doença da minha filha não está esperando muito e ela pode correr o risco de se tornar inoperável.”

Dentre as especialidades que mais preocupam, estão cirurgias oncológicas, cardiovasculares e psiquiátricas, pela imprevisibilidade de evolução dos quadros, o que demandaria acompanhamento recorrente e rigoroso. “Mesmo eletivas, algumas cirurgias não podem esperar eternamente. A situação já era difícil antes da pandemia. Essa questão ficou ainda mais clara”, diz Walter Cintra, professor de Gestão de Saúde da FGV.

Na interseção entre gestores da saúde pública e profissionais na linha de frente do combate à covid, Maira Caleffi, presidente da Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama, também diz que a tendência é de que a defasagem do SUS para cirurgias eletivas se agrave, se faltar coordenação eficiente. “Os atrasos vão aumentar a demanda em áreas onde o SUS é muito deficitário, como câncer avançado, transplantes de órgãos, diálise.”

Em algumas áreas, como urologia e cirurgias abdominais, a estimativa é de que até 80% dos procedimentos tenham sido interrompidos. E o paciente crônico é um ponto crítico. “Ele nunca tem o cuidado que merece do sistema público de saúde. Segue aos trancos e barrancos, às vezes sem saber sequer para qual médico ir”, afirma Maira.

Para Angelo Vattimo, coloproctologista e 1.º secretário do Conselho de Medicina de São Paulo (Cremesp), a solução não se resume a um só tipo de incremento na rede hospitalar. “Não adianta aumentar leitos sem a infraestrutura necessária para que sejam resolutivos.”

Além disso, para retomar cirurgias, medidas de distanciamento e higiene também vão entrar no planejamento. “Ir ao hospital para tratar algo e voltar com covid-19 não é uma situação que queremos”, diz Cintra.

Soluções

O consenso entre representantes de hospitais, especialistas em gestão de saúde e membros da comunidade médica é de que as cirurgias eletivas elevarão a demanda pelo trabalho articulado entre equipes.

Dentre as estratégias possíveis, são defendidas uma “força-tarefa” dos médicos e mais investimento no setor, que luta para driblar problemas estruturais.

Para operações cardíacas, por exemplo, Gustavo Judas sugere modernizar centros cirúrgicos. “Nos serviços que já tinham tempo de espera muito prolongado, a pandemia levará a um prazo ainda maior e obrigará as instituições a lançarem mão dessas tecnologias capazes de otimizar a permanência na UTI e no hospital, com os mesmos recursos”, prevê.

Rede privada

Em um cenário transformado, a rede privada de saúde encara queda de até 20% da receita esperada para o ano, motivada pela quantidade de cirurgias canceladas e o receio dos pacientes de se infectarem em hospitais. No total, 46,7 milhões de brasileiros têm planos de saúde.

“Todos os pacientes que tinham as cirurgias de não emergência adiaram, mesmo os que não poderiam”, diz Francisco Balestrin, presidente do Conselho de Administração da Associação Nacional de Hospitais Privados. A rede, diz, também precisou lidar com escassez de anestésicos, essenciais para tratar casos graves da covid-19, e insumos mais caros, já que só os preços de equipamentos de proteção individual (EPIs) aumentaram cerca de 400%.

A ocupação dos leitos, que em sua maioria continua voltada para as vítimas da pandemia, também caiu da taxa média de 80% para até 30%. “Estamos precisando reconectar o paciente crônico aos seus médicos, hospitais e clínicas, porque as pessoas ainda não estão suficientemente prontas (para voltarem)”, afirma Balestrin.

“No SUS, a pandemia começou mais tarde e está durando mais tempo”, aponta Victor Dourado, presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo. Já no setor privado, segundo ele, “as cirurgias estão acontecendo há algum tempo”.

Para alguns pacientes, já é possível retomar os planos. Chao Enhung, de 62 anos, havia adiado a cirurgia para corrigir seu joanete, marcada para maio, em um hospital particular de São Paulo. No grupo de risco, ela não queria se expor. Hoje, conta estar mais tranquila e conseguiu remarcar para o fim deste mês. “Acho que deu uma acalmada e que a pandemia ainda vai demorar pelo menos um ano. Com o tempo, a gente também relaxa.”

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