Para vice-presidente da entidade que representa o setor no Brasil, migração de recursos para ações e multimercados pode ser algo duradouro
Ao assumir o ministério da Economia, Paulo Guedes declarou que o Brasil deixaria de ser paraíso dos rentistas. A julgar pelo ciclo histórico de juros baixos pelo qual atravessa o país, a renda fixa vem mesmo perdendo espaço para investimentos mais arrojados. Um dos reflexos dessa mudança aparece na indústria de fundos, historicamente dominada por ativos mais seguros. Até os investidores mais conservadores estão sendo obrigados a sofisticar as estratégias se quiserem obter retornos mais atrativos.
Essa transição de perfil está nos números. A captação dos fundos vem sendo liderada pelas categorias mais expostas ao risco: ações e multimercados (fundos que investem em várias classes de ativos como câmbio, ações e renda fixa). É algo peculiar para um mercado tão acostumado à renda fixa como o brasileiro.
Os fundos alcançaram R$ 161,7 bilhões de captação líquida de janeiro a julho, um volume 226% maior que no mesmo período do ano passado, de R$ 49,6 bilhões). O salto extraordinário foi puxado por um aporte pontual em um fundo de direitos creditórios. Mas a liderança dos fundos multimercados e de ações no bolo das captações é o que vem chamando atenção. Elas somaram R$ 37,9 bilhões e R$ 32,6 bilhões, respectivamente, no período.
Hoje, mais de 75% dos recursos de pessoas físicas estão aplicados em fundos de renda fixa, enquanto 9% estão alocados em multimercados e 11,5% em ações. “Essa proporção vem crescendo e tende a ganhar cada vez mais espaço”, acredita o vice-presidente da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) e presidente do Fórum de Gestão de Fundos Mútuos da Associação, Carlos André.
Em conversa com Papo que Rende, André fala da atratividade da renda fixa no novo cenário de juros e comenta o novo momento dos fundos imobiliários, além do maior interesse de pessoas físicas por este tipo de investimento. Leia a íntegra da conversa:
A captação dos fundos teve um aumento expressivo de mais de 200% este ano. Foi uma surpresa?
O ano está sendo bastante interessante de captação líquida até julho. Houve questões pontuais que ajudaram a inflar este aumento e até distorceram um pouco o dado, como a captação de um fundo exclusivo de um grande conglomerado empresarial na categoria de direitos creditórios (FIDCs). Contudo, mesmo sem considerar esse movimento específico, a indústria teve um desempenho bastante interessante. Descontando essa movimentação atípica, de R$ 41,2 bilhões, a captação líquida do setor foi de R$ 120,5 bilhões, um volume bem expressivo. O diagnóstico mais interessante que conseguimos extrair é que a indústria tem apresentado captações acima das médias nos últimos anos.
Os fundos de ações e multimercados cresceram muito e ultrapassaram a renda fixa em volume captado. O que vem puxando esse aumento?
Nós já vínhamos observando essa tendência desde o ano passado. A renda fixa vem perdendo espaço proporcionalmente para os fundos destas categorias. Obviamente isso é reflexo da redução de taxas de juros que está em curso desde o segundo semestre de 2017, caminhando por 2018 e tendo continuidade agora.
O apetite por risco aumentou em um país de perfil tradicionalmente conservador?
Temos percebido um movimento de maior diversificação das carteiras. Vemos um trabalho maior de assessoria aos clientes, tanto nas plataformas de distribuição dos produtos de investimento como nas instituições financeiras. Os distribuidores têm investido mais nisso, principalmente em pessoas físicas. Este trabalho mais próximo, com melhor acesso à informação e combinado a taxas de juros mais baixas acaba contribuindo para que os fundos multimercados e de ações tenham captação mais relevante se comparados à renda fixa tradicional.
Que tipo de investidor está colocando mais recursos em fundos arrojados?
As pessoas físicas aumentaram bastante a alocação nesta classe de fundos. Os investidores institucionais, como fundos de pensão e seguradoras, também estão buscando diversificar suas alocações principalmente para ações. A previdência aberta, que é uma classe específica, apresenta o mesmo fenômeno, aumentando a participação em ações e multimercados.
O que mudou no papel da assessoria de investimentos?
Como a renda fixa tradicional entrega retornos mais baixos, o investidor busca diversificar seu portfólio. Na assessoria mais qualificada de investimentos, as carteiras são otimizadas para dar melhores retornos. Os investidores mais qualificados como private banking e institucionais normalmente já contavam com esses serviços mais qualificados. A novidade é que este trabalho tem se disseminado para pessoas físicas em todo o segmento, dos mais afluentes até o público de varejo.
Como fica a atratividade dos fundos de renda fixa com os juros no piso histórico?
Alguns produtos nessa categoria têm ganhado apelo na indústria. É o caso dos fundos baseados em crédito privado, principalmente debêntures, tanto as tradicionais como as de infraestrutura, que contam com incentivo tributário para pessoas físicas. Hoje, são 163 fundos de infraestrutura emitidos pela Lei 12.431, somando um patrimônio líquido de R$ 15,5 bilhões, segundo dados de junho. Eles se tornam interessantes porque oferecem um rendimento adicional à renda fixa. É claro o risco de crédito pode gerar algum estresse no pagamento dos compromissos lá na frente. Por isso a carteira tem que ser muito bem construída e monitorada.
Então é possível optar por carteiras mais atrativas na renda fixa?
Sempre tem espaço. O cenário ideal é ter uma carteira diversificada. Os fundos com menor exposição ao risco acabam tendo seu espaço e muitas vezes oferecem uma liquidez interessante. No mesmo dia o cliente pode aplicar ou resgatar os recursos. Para quem prefere deixar parte de seu portfólio em ativos menos expostos a risco e com maior liquidez, sempre haverá os produtos tradicionais. Mas provavelmente estes ativos começarão a ter uma menor participação na indústria com a redução histórica das taxas de juros, o que cria uma maior propensão à tomada de risco para alcançar retornos mais interessantes.
Vocês enxergam este novo ciclo como duradouro?
O mundo inteiro tem convivido com juros baixos e até negativos em alguns países. No Brasil, as taxas projetadas pelos mercados futuros de juros e pelas pesquisas do mercado mostram pelo menos mais dois anos de taxas em patamares muito baixos. Com a economia entrando num ciclo virtuoso e a reforma tomando tração, é crível ter uma continuidade deste cenário.
Os fundos imobiliários podem ser outra alternativa para o investidor mais conservador obter maiores retornos?
Tem perspectivas positivas. Estes fundos passaram por um período de menor atividade, assim como o mercado imobiliário, por conta da recessão. Percebemos uma retomada de alguns fundos lançados recentemente e a tendência é que eles acompanhem a atividade econômica. A construção civil ainda não retomou na sua plenitude, mas já se percebe sinais de melhora, ainda que de maneira gradual. Além do benefício tributário deste tipo de fundo, o brasileiro tem uma afinidade com investimentos em imóveis.
Apesar do maior interesse, a alocação de pessoas físicas em ações ainda é baixa. Isso pode mudar?
Já está mudando. Tudo indica uma continuidade da diversificação das carteiras, principalmente de pessoas físicas. É importante ter uma recuperação da economia para refletir em retomada da confiança dos empresários e consumidores e o maior nível de emprego, o que significaria um aumento de renda e maior sobra de recursos para investir. Parece que de fato estamos em uma trajetória que contribui para o bolo de investimentos crescer, que significa aumento de renda lá na frente.