Conceito vago de “residência” pode estar na raiz do problema que levou ao cancelamento de mais de mil cidadanias
Desde o início de 2017, a Justiça da Itália deflagrou uma série de operações contra supostas irregularidades em processos de aquisição de cidadania jus sanguinis (direito de sangue), em inquéritos que atingiram servidores públicos, policiais e pessoas que oferecem serviços de assessoria no país europeu.
Em muitas delas havia ao menos um ponto em comum: uma extensa lista de brasileiros beneficiados, causando preocupação entre aqueles que ainda estão em busca do sonho da dupla nacionalidade e não pretendem esperar nas filas nos consulados.
Essas investigações também ajudam a evidenciar muitos aspectos nebulosos dos processos de cidadania e servem de alerta para quem já está de malas prontas para a nação da bota.
“Faz tempo que a Polícia vai atrás de casos desse tipo. Existe um mercado paralelo e fora da lei em relação aos pedidos de cidadania”, afirma Fabio Porta, que acaba de encerrar seu mandato de deputado na Itália pela circunscrição da América do Sul.
A última dessas operações ocorreu em fevereiro passado, quando o município de Ospedaletto Lodigiano, na região da Lombardia, cancelou a cidadania de mais de mil brasileiros que não cumpriam os requisitos necessários – os processos de reconhecimento haviam sido abertos entre julho de 2015 e julho de 2017.
De acordo com as autoridades locais, dois funcionários públicos e um casal de brasileiros montaram um esquema de corrupção por meio do qual os candidatos obtinham a cidadania sem respeitar os critérios para reconhecimento de residência no país.
“Esse é um fenômeno que vem crescendo nos últimos anos justamente porque o Brasil é onde tem mais complicações para reconhecimento de cidadania. Temos filas de pelo menos 10 anos em cada consulado, e isso acaba gerando um mercado paralelo das pessoas para quem a alternativa é vir à Itália. Dessa forma, acabam se apoiando em assessores, em consultores que possam dar esse tipo de serviço”, acrescenta a também ex-deputada ítalo-brasileira Renata Bueno.
Não há nenhuma lei que regulamente – ou impeça – a atuação dessas assessorias, que chegam a cobrar até 5 mil euros para ajudar um brasileiro a conseguir sua cidadania, um valor que geralmente inclui o aluguel de um imóvel, tradução e acompanhamento na prefeitura onde será realizado o processo.
Em um país que “exportou” milhões de pessoas para o mundo inteiro e hoje recebe dezenas de milhares de migrantes forçados a cada ano, o tema da cidadania é uma questão delicada. A legislação italiana adota atualmente o “jus sanguinis” e é bastante aberta para aqueles que pleiteiam a nacionalidade por direito de sangue.
Porém muitas dessas pessoas veem a Itália apenas como um instrumento para conseguir o passaporte europeu e de lá mudar para outro país do bloco. Por outro lado, filhos de imigrantes encontram dificuldades para obter a dupla nacionalidade, mesmo que tenham passado a vida inteira na península.
Existe até um projeto de lei para introduzir o princípio do “jus soli” (“direito de solo”) na legislação, o que beneficiaria dezenas de milhares de jovens que nasceram na nação da bota, mas de pais estrangeiros.
“Temos muitas pessoas que nasceram e cresceram na Itália e permanecem estrangeiras. Esse é um problema de nossa lei, muito aberta para aqueles de origem. Se olharmos objetivamente, o fato de alguém ter um antepassado não faz com que ela se sinta italiana. Por isso eu te digo que, na Itália, esse é um tema um pouco incômodo”, afirma a advogada italiana Giulia Perin, especializada em direito migratório.
Residência
Um dos problemas que permeiam boa parte dessas investigações é a questão da residência. Para tirar a cidadania na Itália, é preciso comprovar moradia no país, o que exige a permanência na península por um período relativamente incerto, mas que costuma durar por volta de três meses.
Em alguns inquéritos, existe a suspeita de irregularidades no reconhecimento da residência, papel que cabe a um guarda municipal, o chamado “vigile”. Há também assessorias que vendem a ideia de que tal etapa pode ser concluída rapidamente ou sem a necessidade da presença permanente do candidato em solo italiano, o que vai de encontro ao que estabelece a lei.
“Alguém diz que o caminho lento é no consulado e o caminho rápido é na Itália. A via lenta é o consulado porque existem poucos, e na Itália é mais rápido porque há mais prefeituras, mas o pressuposto para fazer em uma cidade é que você tenha sua residência habitual na Itália”, explica Perin.
Em teoria, essa possibilidade é destinada àqueles que estejam dispostos a fixar sua nova casa no país da bota. A ideia é que quem tenha sua vida no Brasil ou em qualquer outro país faça o processo por meio da rede consular.
“Não é que sua vida inteira está no Brasil e você vem só para fazer o procedimento”, acrescenta a advogada. Mas, obviamente, com a cidadania em mãos, não há nada que obrigue a pessoa a permanecer na Itália.
O importante é que, enquanto não obtém a dupla nacionalidade, o postulante tenha disponibilidade para de fato morar na cidade onde o pedido foi protocolado. “Aquilo que é grave é dizer ‘estou na Itália’ e, na realidade, enquanto espero a cidadania, vou para outro lugar. É preciso ter paciência e permanecer aqui até que o processo tenha acabado”, ressalta Perin.
Segundo o artigo 42 do Código Civil italiano, “residência” é o local no qual a pessoa fixa sua “moradia habitual”, um conceito vago e subjetivo que abriu caminho para certa liberalidade na interpretação da lei.
De fato, ninguém precisa passar anos na Itália para ter reconhecida sua cidadania por direito de sangue, mas o procedimento correto exige pelo menos alguns meses vivendo no país.
Outro problema que nasce da ideia imprecisa de “residência” é evidenciado em casos nos quais dezenas de pessoas são hospedadas em sequência na mesma casa e na mesma cidade – Ospedaletto, que cancelou mil cidadanias, tem somente 2 mil habitantes.
“Nada é ilegal”, diz a advogada, “mas se você faz uma semana um, uma semana outro, alguém pode se incomodar. Algum político. Qualquer um pode fazer uma denúncia. E o trabalho do Ministério Público é investigar”.
Dicas
O farmacêutico Wallace Bottacin é administrador do grupo “Cidadania Italiana – Área Livre”, comunidade que reúne quase 120 mil pessoas no Facebook e oferece dicas para quem está atrás do passaporte italiano, e também vê com bons olhos as investigações contra supostas irregularidades.
“Infelizmente, existem muitas pessoas que vendem facilidades que não existem e pessoas que buscam comprar tais facilidades. Sempre que alguma empresa oferece algum serviço milagroso, em um tempo extremamente curto, é necessário ficar atento. Dentro deste contexto, as operações da Justiça italiana são extremamente necessárias”, afirma.
Além de fugir de milagreiros, ele recomenda sempre entrar em contato com clientes de determinada assessoria para descobrir como o processo foi feito.
“Pergunte sobre a casa, sobre o tempo que o ‘vigile’ demorou para passar, como foi o dia em que o ‘vigile’ passou, quanto tempo o processo demorou. Não se apegue apenas ao preço, pois ele é um dos fatores que menos importa”, explica.
Outra dica para não cair em armadilhas, na visão de Bottacin, é jamais permitir que o assessor converse sozinho com a prefeitura. Segundo ele, é preciso estar sempre presente e ouvir e registrar tudo.
“Não é um bom sinal quando uma empresa não permite o contato do cliente com o oficial do comune de forma independente”, acrescenta o farmacêutico, que conseguiu sua cidadania italiana esperando uma fila de nove anos e meio no consulado de Curitiba.
“A última recomendação é, obviamente, ter certeza de que sua residência foi feita de forma correta. Se a pessoa não tem tempo disponível para ficar na Itália, ela deve entrar na fila dos consulados”, ressalta.
A advogada Giulia Perin vai além. Para ela, até mesmo o serviço de um assessor ou agência é dispensável, ao menos no que diz respeito ao contato com as prefeituras. “Talvez você precise de alguém que seja um tradutor, mas o procedimento, uma vez na Itália, com todos os documentos em ordem, não é complexo. É possível fazer sozinho”, aponta.
Perin também acredita que é melhor o postulante procurar um apartamento por contra própria. Sairá mais caro, porém ele terá a certeza de estar fazendo do jeito certo. “Uma vez que você tem a casa, é só ir à prefeitura e acabou. Não é que se precise de um superespecialista”, acrescenta.
Posso perder minha cidadania?
Eventuais investigações podem descobrir pessoas que obtiveram suas cidadanias jus sanguinis sem estar no país durante toda a tramitação do processo ou por meio de subornos, mas é improvável que levem à cassação da nacionalidade italiana – o caso de Ospedaletto é exceção.
“Para mim, se você tem o direito de ser italiano, não é porque fez o procedimento errado que você não é mais italiano”, explica Perin, fazendo a ressalva de que isso pode não valer para casos em que fique comprovada a falsificação de documentos.
“Mas, caso se descubra que alguém pagou para declarar que era residente, e provam que você esteve ali por duas semanas, a investigação pode existir, não para tirar-lhe a cidadania, mas por corrupção”, alerta a advogada.
Ela destaca que inquéritos desse tipo já aconteceram em outros anos e contra pessoas de outros países. “Não é que tenham um problema com os brasileiros, o problema é com quem abusa da lei”, afirma.