Com base em exames de 51.665 pessoas, de diversos países, os cientistas identificaram 306 variantes genéticas que influenciam a estrutura do cérebro
Mapear pequenas variações no genoma humano capazes de influenciar a arquitetura do córtex cerebral e a predisposição a doenças como esquizofrenia, epilepsia, autismo, transtorno bipolar, anorexia, depressão, demência e várias outras. Esse foi o objetivo de um estudo que envolveu mais de 360 cientistas de 184 instituições em todo o mundo. Os resultados foram publicados nesta quinta-feira (19/03) na revista Science.
Com base em exames de 51.665 pessoas, de diversos países, os cientistas identificaram 306 variantes genéticas que influenciam a estrutura de regiões-chave do cérebro. A investigação foi conduzida no âmbito de um consórcio internacional chamado ENIGMA (acrônimo em inglês para Melhorando a Neuroimagem Genética por Metanálise), dedicado a estudar diversas doenças neurológicas e psiquiátricas.
Entre os integrantes está o Instituto de Pesquisa sobre Neurociências e Neurotecnologia (BRAINN) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) apoiado pela FAPESP.
“Trata-se do maior estudo de neuroimagem já feito sobre o córtex cerebral humano. Os dados permitem traçar o primeiro mapa da arquitetura genética do cérebro humano”, disse à Agência FAPESP Fernando Cendes, professor da Unicamp e coordenador do BRAINN.
Segundo o pesquisador, a principal vantagem de reunir um conjunto tão grande de informações é a possibilidade de detectar até mesmo alterações muito discretas na estrutura cerebral, que passariam despercebidas em outra situação. “Esses resultados nos permitem entender melhor o funcionamento e a estrutura do cérebro normal e também do cérebro doente”, afirmou.
Dois tipos de análise
As análises descritas na Science baseiam-se em dois grandes conjuntos de dados. O primeiro inclui imagens de ressonância magnética quantitativa do cérebro, por meio das quais os pesquisadores calcularam o volume cortical dos indivíduos analisados. Cerca de 25 mil participantes eram saudáveis e serviram de controle. O
s demais eram pacientes acometidos por condições como insônia, sintomas depressivos, transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), epilepsia e doença de Parkinson.
“O córtex é a camada mais externa do cérebro, composta pela massa cinzenta, repleta de sulcos e giros. É a área mais nobre e rica de neurônios, responsável por funções cognitivas complexas, como linguagem, emoções, memória e processamento de informações”, explicou Cendes.
No estudo, o córtex foi dividido em 34 regiões consideradas relativamente homogêneas. Em cada uma dessas regiões foram medidos dois parâmetros: a espessura cortical (altura entre a substância branca, abaixo do córtex, e a dura-máter, a meninge que recobre o cérebro) e a área cortical (área total de cada uma das 34 regiões).
“Todos os grupos adotaram uma técnica que possibilita a aquisição de imagens tridimensionais em alta resolução e, com auxílio de algoritmos computacionais, as medidas foram feitas de forma praticamente automática. Isso é importante porque elimina o viés do examinador”, explicou Cendes.
O outro conjunto de dados inclui as sequências completas dos genomas de participantes e de amostras de tecido depositadas em bancos de cérebros, o que possibilitou aos pesquisadores analisar marcadores genéticos como, por exemplo, os polimorfismos de nucleotídeo único (SNPs, na sigla em inglês) – variações na sequência de DNA que afetam somente uma base (adenina, timina, citosina ou guanina) e permitem comparar genomas de diferentes indivíduos.
Com todos os dados em mãos, o passo seguinte foi correlacionar as medidas corticais com as variações encontradas nos genes para, em seguida, comparar os padrões observados em indivíduos saudáveis com aqueles identificados em pessoas afetadas por diferentes sintomas e doenças.
Cada grupo de pesquisa analisou localmente os dados de seus pacientes e indivíduos-controle. Ao final, uma meta-análise foi conduzida sob a coordenação de Katrina Grasby e outros integrantes do Grupo de Pesquisa em Genética Psiquiátrica do QIMR Berghofer Medical Research Institute, na Austrália, em colaboração com pesquisadores da University of Southern California e da University of North Carolina at Chapel Hill, ambas nos Estados Unidos. O BRAINN contribuiu com dados de 150 brasileiros.
Ao final, elaborou-se uma espécie de mapa que permite identificar, por exemplo, quais regiões do córtex de uma pessoa com epilepsia têm volume aumentado ou reduzido em comparação a um indivíduo sem a doença, bem como quais genes se correlacionam com essas alterações.
“Os resultados nos permitem entender melhor os genes relacionados com o desenvolvimento de cada uma das 34 regiões do córtex estudadas. E nos mostram que tanto as alterações na arquitetura cortical como as variantes genéticas podem predispor indivíduos a determinadas doenças”, contou Cendes.
Segundo Grasby, o estudou mostrou que as variantes genéticas associadas a uma redução do volume cortical também contribuem para um maior risco de TDAH, depressão e insônia. “Isso nos dá um ponto de partida para explorar ainda mais esse vínculo genético entre a estrutura do cérebro e o transtorno”, disse a australiana.
De acordo com Cendes, também foi possível identificar uma correlação entre alguns genes e áreas corticais específicas com o desempenho cognitivo e nível educacional.
“Ainda está longe de ser uma correlação de 100%, ou seja, ainda há vários outros genes relacionados com a predisposição a cada uma das doenças ou funções cognitivas investigadas que não foram identificados. Mas, com base neste primeiro estudo, é possível traçar uma análise com escala ainda maior e aplicar técnicas de inteligência artificial para encontrar potenciais biomarcadores de doenças complexas que afetam o cérebro”, disse Cendes.
O objetivo final do grupo é entender como os genes modulam a estrutura cerebral e identificar conjuntos de alterações genéticas capazes de predizer se uma pessoa está mais sujeita a desenvolver uma determinada doença.
“Seria um passo em direção à medicina personalizada. Se soubermos como o cérebro de um indivíduo se difere de outro poderemos adequar o tratamento ou mesmo orientar medidas de prevenção mais específicas”, disse o coordenador do BRAINN.